Protestantismo, Modernização e Estado Leigo: Luteranos confessionais entre a ortodoxia e a laicidade nos inícios da era Vargas

Arnaldo Érico Huff Júnior[*] []

Resumo

O protestantismo é regularmente identificado a processos de modernização, quer seja como padrão e controle disciplinadores de condutas, quer como um passo geral rumo à livre escolha religiosa e, conseqüentemente, à individuação moderna. Tal pré-concepção pode, todavia, embaçar a vista de quem observa algumas manifestações protestantes, eminentemente aquelas ortodoxas ou fundamentalistas. Pretendo aqui, a partir da análise de um episódio que envolveu, ao redor da discussão sobre ensino religioso e ensino laico nos anos 1930, o Sínodo Evangélico Luterano do Brasil e a Coligação Pró-Estado Leigo, problematizar tais ligações naturalizadas entre protestantismo e modernização. A estrutura ortodoxa que permeava os discursos e práticas daqueles protestantes luteranos, ainda que os tenha levado a sustentar a separação entre Igreja e Estado, diferia em muito do que hoje se possa compreender como modernização ou processos de individuação. Em se falando em protestantismo e modernização, se faz necessário um olhar complexo e contextualizado por sobre um fenômeno que é plural.

Palavras-chave: protestantismo, luteranismo confessional, modernização.

Abstract

Protestantism is often identified with the process of modernization, whether as a disciplinarian control over standards of behavior, or as a general step toward free religious choice and, consequently, toward modern individualization. Such a preconception can, however, obscure the vision of an observer interested in Protestant manifestations, principally those of an orthodox or fundamentalist character. Based upon the analysis of a discussion on religious and lay education during the 1930’s, which involved the Lutheran Evangelical Synod of Brazil and the Pro-Lay State Coalition, I intend to assess the assumed connections between Protestantism and modernization. The orthodox structure that permeated the discourse and practice of the Lutheran Protestants, despite having led them to support the separation of Church and State, was very different from what we now understand as modernization or the process of individualization. When discussing Protestantism and modernization, we must utilize a complex and contextual view of this phenomenon characterized by plurality.

Keywords: Protestantism, confessional Lutheranism, modernization.

1. Introdução

Há um certo senso comum, percebido aqui, ali e também em meios acadêmicos, que relaciona imediatamente o protestantismo à idéia de modernidade. A crença compartida sugere de modo um tanto vago que os protestantes trazem algo novo, moderno, especialmente ao Brasil. Sustenta-se um postulado e por vezes mesmo uma expectativa em relação ao protestantismo, no sentido de que possa representar um avanço em relação a um passado religioso, político e econômico que enleia o país nas tradições do catolicismo e das religiões afro-brasileiras, bem como apontar um horizonte de emancipação das relações hierárquicas historicamente aqui constituídas. Em especial o pentecostalismo, herdeiro direto do universo protestante, é tido como o locus da adesão livre e consciente de pessoas que romperam com o passado religioso tradicional e anunciam um passo importante nas trilhas da modernidade secularizada. Como corolário mais eminente de tais concepções, evoca-se regularmente a teoria da secularização ancorada em Max Weber, principalmente o seminal estudo A ética protestante e o espírito do capitalismo.

Sem recusar, de modo algum, a possibilidade de uma afinidade eletiva entre protestantismo e modernidade, gostaria, porém, de problematizar e relativizar suas ligações naturalizadas a partir de um estudo de caso sobre luteranismo no Brasil. Para além das aparências e do senso comum, é preciso saber de qual manifestação protestante se está tratando, que vertente representa, quais processos históricos estão envolvidos e em que contextos se constroem as práticas dos atores. Trataremos, para tanto, de analisar um pequeno episódio que envolveu, nos inícios da Era Vargas, líderes do Sínodo Evangélico Luterano do Brasil e a Coligação Pró-Estado Leigo, buscando avançar no tratamento histórico da cultura político-religiosa que envolvia aqueles luteranos. A idéia central é de que a identificação entre protestantismo, modernização e secularização não deve ser naturalizada, demandando antes do pesquisador um olhar complexo e contextual. Como veremos, o luteranismo assegurado por aqueles luteranos estava mais para o medievo que para a modernidade.

2. O evento: tradição ortodoxa versus modernização

O ano era o de 1934. O Brasil vivia o final do período do governo provisório que vigorava desde 1930, primeiro movimento da Era Vargas, mas que já enfrentara a resistência da Revolução Constitucionalista de 1932. Em novembro de 1933, instalara-se a Assembléia Constituinte que produziu a Constituição de 1934, promulgada em 15 de julho daquele ano. Logo em agosto, Getúlio Vargas foi eleito presidente nacional e pôde, a partir de então, governar com poderes ampliados pela nova Constituição (Faria e Barros, 1986). O evento que envolveu o Sínodo Luterano e a Coligação Pró-Estado Leigo fez parte das discussões sobre o lugar do ensino religioso na recém promulgada Constituição, discussão essa que vinha já se desenvolvendo desde meados dos anos 20.

Estavam em jogo, naqueles anos turbulentos, de um lado, as idéias liberais e positivistas que ganhavam, desde o século anterior, a mentalidade de uma parcela importante dos intelectuais e líderes políticos brasileiros; de outro, a força de conservação representada por expoentes da Igreja Católica e pela liderança alinhada às antigas formas de organização nacional (Ruedell, 2005). Os primeiros, obviamente contra a existência do ensino religioso na escola pública; os últimos, a favor.

Dentre a ala dos modernizantes, encontrava-se a Coligação Pró-Estado Leigo, que, conforme o boletim A Lanterna de agosto 1933, era composta por “...homens dignos e ilustres de várias classes sociais” e vinha com o objetivo de “... combater a todos os erros e vícios da (...) educação brasileira, para limpá-la dos preconceitos que a aflig[iam]” (apud Moraes, s.d.: 10). Sob essa bandeira, a Coligação pretendia na verdade minar as bases da influência que exercia a Igreja Católica através do ensino religioso em todo o país.

Buscando, nesse intuito, arregimentar também forças protestantes contra o catolicismo e sua influência na sociedade e no Estado brasileiros – talvez sob efeito da identificação entre protestantismo e modernização acima referida –, a Coligação Pró-Estado Leigo convidou o Sínodo Evangélico Luterano do Brasil para participar de uma de suas reuniões no Rio de Janeiro, então capital federal. De fato, o Sínodo tinha entre suas convicções oficiais a de que a Igreja deveria estar separada do Estado. Todavia, a despeito do mesmo objetivo, a saber, o fortalecimento do Estado leigo, e do rival comum, a Igreja Católica, o Sínodo Luterano e a Coligação possuíam motivos diferentes produzidos por também diferentes concepções de sociedade, que por sua vez embasavam formas diversas de práticas sociais.

O enviado à reunião foi o pastor Eurípedes Cardoso de Menezes, que serviu ao Sínodo Luterano no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, entre 1933 e 1935 (Warth, 1979: 289). Sobre ele voltaremos a falar adiante. Suas impressões tanto da reunião quanto da Coligação foram as piores possíveis. A notícia veiculada no periódico oficial do grupo, o Mensageiro Luterano, em novembro de 1934, nos traz algo do que o pastor colheu das palavras proferidas na ocasião pelo General Ximenes Villeroy:

De repente, porém, confunde clericalismo com Christianismo, critica a cosmogonia mosaica, zomba da revelação, lê com pilherias o Credo Niceno, que procura pulverizar, zomba, blasphema, vomita indecencias entrecortadas de ruidosos applausos e estrondosas gargalhadas duma multidão de incredulos, de positivistas e communistas. Indignado, levantámo-nos e deixámos a mesa profundamente arrependidos de lá termos ido.
O lugar dos crentes não é entre os incredulos, os zombadores, os escarnecedores. A Colligação Pró-Estado Leigo é uma organização anarchista, communista, que astuciosamente, procura o apoio do protestantismo no combate que move contra a Igreja Romana para, depois de triumphar, destruir o proprio protestantismo! Mas os lutheranos não caem na armadilha. Não se colligarão com os atheus, os inimigos da Família e os demolidores da Pátria! (1934: 94)

Pelo relato, o tom impresso pelo general em seu discurso parece ter sido vibrantemente anticlericalista e mesmo anti-religioso. Não temos em mãos, todavia, documentos para avaliar com maior precisão o que tinham em mente os membros da Coligação. Talvez ingenuamente imaginassem que o Sínodo Luterano pudesse representar uma corrente modernizante do protestantismo alemão, matizada pelo liberalismo teológico iluminista. Ou talvez estivessem apenas em busca de qualquer reforço para sua empreitada anticatólica. De fato a Coligação contou com a participação tanto de comunistas, quanto de protestantes e espíritas, tendo sido inclusive presidida por uma das personalidades nacionais do espiritismo, o Dr. Arthur Lins de Vasconcelos Lopes.[1] Considerando, todavia, que nosso foco recai sobre a mentalidade protestante, os objetivos detalhados ou verdadeiros da Coligação não ganham uma importância central no argumento. Consideremos apenas que o grupo representava para os luteranos uma interlocução de caráter modernizante.

Quanto ao Sínodo, já desde os anos 20 o Mensageiro Luterano trazia manifestações regulares que embandeiravam a separação entre Igreja e Estado, o ensino leigo e a liberdade religiosa. Era, assim, realmente fácil acontecer que um observador externo colhesse uma impressão de modernidade ou de vanguarda sobre o grupo. Uma tal impressão quedava, entretanto, superficial e equivocada, principalmente se tal observador esperasse do Sínodo, por princípio, posturas críticas ao governo ou à própria religião. Tratava-se antes de um grupo conservantista em termos políticos e religiosos. Nesse sentido, para compreendermos seus posicionamentos, é preciso, além de recorrer a práticas e discursos, recorrer também às crenças, à cosmologia, ao luteranismo confessional e sua teologia política posta em ação nos diferentes contextos.

3. Luteranismo Confessional: algumas dinâmicas entre teologia e política

O Sínodo Luterano – atual Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) – foi fruto das atividades de um outro grupo luterano, teuto-estadunidense, o Sínodo de Missouri, fundado por imigrantes saxões nos Estados Unidos em meados do século XIX. A partir de 1900, os luteranos do Sínodo de Missouri passaram a enviar pastores missionários para trabalhar entre os imigrantes alemães no sul do Brasil (Warth, 1979; Todd, 2000).[2]

O processo de imigração dos saxões e a fundação do Sínodo de Missouri ocorreram no contexto de um movimento de despertamento religioso que representou uma reação da antiga fé cristã diante dos desenvolvimentos da racionalidade moderna e de sua influência no seio da religião. Nesse contexto, o Sínodo, bem como suas instituições afiliadas, construíram desde seus primórdios uma identidade oficial ao redor do que chamo de luteranismo confessional ortodoxo: um modelo de luteranismo que tem oficialmente como normas incondicionais de fé e prática: 1) a Bíblia, considerada como a palavra de Deus inspirada e infalível e 2) as Confissões Luteranas agrupadas no Livro de Concórdia de 1580, consideradas como a verdadeira exposição de tal palavra de Deus.[3] A assunção de que a única interpretação correta da Bíblia, a infalível revelação de Deus, está apresentada no Livro de Concórdia é o critério oficial principal para pertença individual e grupal às instituições do luteranismo de tipo ortodoxo-confessional, bem como um fator central na busca pela manutenção da unidade de igrejas e organizações.[4]

Calcado nessas idéias, há como que um núcleo duro e aglutinador das crenças do Sínodo de Missouri e de seu sínodo afiliado no Brasil, o coração de seu sistema religioso oficial e herança forte da reforma do século dezesseis: a crença de que o ser humano é salvo somente pela fé por meio de Jesus, e não por qualquer tipo de boas obras. A salvação eterna, nessa visão, é fruto exclusivo da graça e compaixão de Deus, ao passo que as obras tornam-se uma conseqüência da vida cristã, não uma necessidade para alcançar a Deus. De acordo com tal concepção, é Deus quem vem aos homens, e não os homens que a ele chegam. A sustentação dessas crenças é garantida pelo entendimento de que elas próprias estão reveladas na Bíblia diretamente por Deus, em sua palavra inspirada e infalível, a qual foi, por sua vez, exposta corretamente apenas nas Confissões Luteranas de 1580. A verdadeira Igreja de Cristo na terra é, por conseguinte, somente aquela que assim se posicionar. Em tais crenças não são admitidas alterações de nenhum tipo e os pastores do grupo devem atender ao chamado divino de atalaias e propagadores dessa verdade. Rejeita-se fortemente qualquer tipo de unionismo ou ecumenismo, o que colocaria em risco a verdade da revelação, e sublinha-se a centralidade do ofício pastoral na condução da doutrina da Igreja em sua pureza. Ao redor desse núcleo duro são derivadas e elaboradas doutrinas, discursos, memórias e identidades que fundamentam ações e políticas individuais e grupais, e que ao mesmo tempo constituem outros núcleos, relativos, por exemplo, às esferas da educação, da missão, da diaconia, etc. (Huff Júnior, 2006: 6).

Quanto ao universo relativo à política, à economia e ao espaço público, o Sínodo de Missouri organizou-se separada e independentemente do Estado. Para o pastor Carl Ferdinand Wilhelm Walther, principal liderança do Sínodo no período de sua fundação e nos anos que a sucederam, a separação entre Igreja e Estado era não uma irregularidade, mas a condição normal e adequada de uma legítima congregação cristã. O argumento encontrava base na Confissão de Augsburgo de 1530, no artigo XXVIII: “Pois a administração política trata de coisas diferentes das do evangelho. (...) Não se devem confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil” (Livro de Concórdia, 1981: 88; Dalmann et al., 1938: 89). Estavam aí presentes idéias acerca da separação dos estamentos secular e espiritual, cunhadas por Lutero e seus companheiros na reforma. A participação política, na perspectiva luterano-missouriana, deveria situar-se no campo da liberdade de cada cristão, não sendo pertencente à esfera de atividade da Igreja como tal. Ao cristão, todavia, tal participação deveria estar sujeita ao princípio de que toda autoridade é instituída por Deus e precisa por isso ser acatada, conforme as palavras de Paulo: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”. (Romanos: 13,1)

O todo desse conjunto de doutrinas e orientações para a vida performava uma estrutura de significados que fundamentava e ordenava o Sínodo Luterano à época de Getúlio, assim como o faz com a atual IELB. São estruturas de longa duração. Trata-se daquele saber objetivo a ser interiorizado pelos membros do grupo que pontuava Peter Berger (2003). Todavia, estruturas socioculturais como estas fazem sentido somente articuladas à vida das pessoas nos contextos históricos. Ou seja, fazem sentido quando praticadas. Valem, assim, à análise, como disse Sahlins (1990), as estruturas das ou nas conjunturas em que se dão as dinâmicas e as mudanças sociais.

São reveladores, por exemplo, os contextos nos quais ganharam corpo as idéias acerca da separação dos estamentos espiritual e secular. Quando estabeleceu tal distinção, Lutero via na Europa uma forma de organização política que incidia pesadamente sobre a esfera religiosa, e vice-versa. Dava-se então que, se de um lado o poder religioso governava pela força, de outro o poder secular recorria à coerção pela imposição de crenças e práticas religiosas. As questões religiosas transformavam-se, assim, em questões políticas, e as políticas, por sua vez, em religiosas. Lutero, vendo nisso um problema, estabeleceu a referida distinção: o estamento espiritual deveria tornar os homens, pelo evangelho, pessoas justas e de bem; o secular, por sua vez, destinar-se-ia a manter a paz e prevenir as más ações, podendo para isso inclusive fazer uso da força. Todavia, para o reformador, os estamentos eram complementares, não suficientes em si e Deus era o Senhor sobre ambos. (Lutero, [1523] 1992; Duchrow, 1987: 10; Beck, 1988: 40-41). Logo após os anos iniciais da reforma, porém, os estamentos secular e espiritual voltaram a se confundir, mesmo nos territórios luteranos. Em função da necessidade de proteger o novo e frágil movimento dos ataques do Papa e do Imperador, foi necessário fortalecer os laços com os príncipes simpáticos à reforma, os quais tiveram seus poderes ampliados religiosa e politicamente. As igrejas territoriais alemãs são frutos desses processos.

De outra forma, no momento em que os alemães que fundaram o Sínodo de Missouri emigraram da Saxônia para os Estados Unidos, fatores importantes que os impulsionaram estiveram ligados justamente a problemas que o primeiro líder do grupo, o pastor Martin Stephan,[5] tivera com o clero e a Igreja estatal da Saxônia. De um lado estava Stephan, representando a ortodoxia luterana e as Confissões, de outro o clero local, influenciado pelo racionalismo teológico que o iluminismo legara à teologia protestante do Dezenove. Uma vez chegados à “América”, a doutrina acerca da separação entre Igreja e Estado tornou-se um vetor central na formação do grupo e de sua identidade oficial, como vimos na supramencionada declaração de Walther. Na verdade, um dos motivos da escolha pelos Estados Unidos era a liberdade religiosa lá existente. Agregue-se a isso, para além de um isolamento religioso voluntário assegurado pelo grupo, também sua condição imigrante e o isolamento étnico que experimentou em seus primeiros anos nos EUA (Forster, 1953; Luebke, 1965). Tal foi o contexto em que foi acionado o repertório de significados relativo à separação entre os estamentos secular e espiritual.

Se comparadas as duas situações, pode-se perceber que idéias semelhantes, relativas à separação entre o estamento secular e a estamento espiritual ou entre o Estado e a Igreja, têm lugar, são acionadas e ganham sentido em contextos diferentes. Para Lutero e seus companheiros, tratava-se de um rompimento com o que consideravam uma confusão prejudicial à ordem de um mundo compreendido em termos sagrados, mas em contraposição ao poderio de Roma. Para os imigrantes saxões, tal cosmovisão sagrada ainda permanecia, porém o inimigo mudara: era agora a própria modernidade mediada pela teologia racionalista e pelo Estado. No Brasil, por sua vez, o quadro se transformaria novamente.

4. Outra história no Brasil: o Luteranismo Confessional entre a Igreja Católica e o Estado

No caso do Brasil, o quadro do fortalecimento acerca da idéia da separação entre Estado e Igreja veio permeado pelas disputas com a Igreja Católica, a “besta romana” como diziam os luteranos, o que deu ao antigo discurso da separação entre as esferas secular e espiritual novos significados, em também novos jogos de poder.

Desde o começo da segunda década do século XX, o Sínodo vinha desenvolvendo atividades voltadas para fora da comunidade germânica que performara primordialmente sua institucionalização. A localidade de Lagoa Vermelha, no RS, representou uma primeira tentativa nessa direção, ao final da Primeira Guerra. Lá, os luteranos missourianos vieram a conhecer mais intensamente as disputas com o catolicismo. Vejamos, por exemplo, como desde a pequena Lagoa Vermelha o jovem pastor Rodolpho Hasse, responsável pela missão e editor do Mensageiro Luterano entre 1920 e 1968 (!) (Warth, 1979: 40), saudava o centenário da independência e apresentava ao mesmo tempo suas críticas e reivindicações nas páginas do periódico:

Já ha cem annos o Brasil traz em suas proprias mãos as redeas de seu regimem. Cem annos de independencia e libertação corporal. Porém o seu novo regimem, monarchico, já nasceu com algumas espirituaes (sic). O jovem Brasil não conseguiu desembaraçar-se da tyrannica ditadura papal. O velho cancro das nações continuou a corroer-lhe as entranhas. Sómente a Republica veiu a remedial-o com a separação da Igreja e do Estado. Mesmo nela ainda notam-se seus vestigios. A curia romana ainda é o leão do dia, ainda mette suas mãos importunas no mechanismo do paiz, talvez hoje mais do que ha annos. (...) A grande influencia do papismo todavia tem sido a causa do regresso e demoralisação das nações (Mensageiro Luterano, 1922: 69).

Do contexto das disputas do campo religioso de Lagoa Vermelha, Hasse entrevia a situação nacional político-religiosa e evocava, na conjuntura republicana, a idéia luterana da separação dos estamentos espiritual e secular. Sublinhava, também, em seguida, a posição dos luteranos diante do que tinha como “potestades superiores”, a saber, toda a ordem governamental instituída, desde o chefe da nação até os funcionários públicos. Em seu argumento, ao passo que a Igreja Católica considerava o poder do Papa acima do poder temporal, tendo o Estado como servo de seus interesses, a Igreja Luterana cria que o poder temporal era necessário e instituído por Deus, e que, por isso, dever-se-ia respeito e submissão ao Estado (Ibid.: 69-70). Em suas palavras:

Visto que “não ha potestade senão de Deus; e as potestades que ha são ordenadas por Deus”, a Igreja Lutherana ensina a sujeição a qualquer regimem estadual, seja monarchico ou republicano, regular ou irregular, sempre que seja potestade superior. Ella considera toda e qualquer forma de governo como ordenação de Deus. Se há um governo regular e bom, ella dá graças a Deus, por poder viver uma vida quieta e socegada, e se Deus permitte um governo irregular e máu, ella conseidera-o como correção de Deus e castigo dos impios, apellando ao arrependimento e roga a Deus que a livre de novo da tyrania. Sobretudo não permitte que os seus fieis tomem parte em rebeliões (Ibid.: 71).

Fechava-se, assim, um círculo de significados. Fosse ele bom ou mau, o poder do Estado estava dado por Deus e não deveria encontrar resistência. A Igreja Luterana, por sua vez, contentar-se-ia em ter sossego e prosseguir com sua tarefa de pregar o evangelho. E nos aproximamos aqui de um ponto central, novamente vizinho à ortodoxia e à idéia de pureza: a missão luterana confessional era, no jargão do grupo, apenas a da “pregação da pura e sã doutrina”. O alvo principal da separação entre Igreja e Estado consistia, então, na preservação do direito de dar seguimento a essa missão, não na garantia da autonomia do Estado em relação à Igreja ou a Deus. A oposição à Igreja Católica, por sua vez, se impunha em função do poder exercido pelos representantes de Roma junto ao Estado e a ameaça que tal proximidade representava à mensagem que o luteranismo confessional ortodoxo tinha a trazer ao povo no Brasil. Para os líderes do Sínodo, a Igreja Romana era contrária à separação entre Igreja e Estado porque sempre utilizara o “braço secular” para suas intenções. De Cristo, porém, o ensinamento era claro para os luteranos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Ibid.: 73). O Sínodo, nesse sentido, só se oporia ao Estado se o mesmo interferisse na suprema missão luterana ortodoxa da pregação da verdade, mesmo por que, conforme a teologia da separação dos dois estamentos, Deus era Senhor tanto da esfera espiritual quanto da secular. Como delimitava novamente o pastor Hasse:

O Estado, por sua vez, não pode ultrapassar os limites de seus direitos. Se o faz, abusa dos mesmos. E contra os abusos da parte do Estado a Igreja Lutherana dá testemunho e protesta solemnemente. Taes são, quando o Estado exige dos christãos cousas contrarias á Palavra de Deus e á consciencia, como communhão de bens no sentido dos revolucionarios modernos, porque isto seria transgressão do setimo mandamento, abolição do matrimonio, opressão dos subditos, submissão a credos quaesquer que o Estado quizesse impor, violação dos sagrados direitos paternos e outros attentados contra a Lei de Deus e a consciencia. Em taes casos ella procede segundo as palavras: “Mais importa obedecer a Deus que aos homens.” Actos 5:29 (Ibid.: 71).

O recado era, na prática, mais ou menos a seguinte: “Não nos interessamos por política, apenas pela pregação do evangelho, deixem-nos e cuidem da tarefa de administrar o século, sem exceder vosso limite e sem legislar sobre causas espirituais”.

A partir de uma tal perspectiva, diante da questão da educação e do ensino religioso, o Sínodo Luterano pretendia, sem o auxílio monetário do Estado, formar bons cidadãos, conhecedores de seus direitos e deveres através de suas escolas. Aceitava e apoiava também as escolas estaduais, para a formação de cidadãos úteis à pátria. Todavia, conforme Hasse, “... para os seus filhos a Igreja Lutherana exige aulas puramente lutheranas e suas, porquanto o Estado não é competente para cuidar de instrucção religiosa” (sic) (Id. ibid.: 71).

As idéias do pastor Hasse são paradigmáticas de uma mentalidade compartilhada em boa medida pelos pastores e líderes do grupo até os dias atuais (Huff Júnior, 2006). Considerando tais questões e argumentos, pode-se perceber a diferença entre os ideais e motivos que levavam o Sínodo a argumentar pró-separação entre Igreja e Estado e os ideais e motivos que impulsionavam a multifacetada Coligação Pró-Estado Leigo, especialmente em sua vertente positivista ou comunista matizadas pelo anticlericalismo e pela idéia de um Estado racional-iluminado.

Poucos tempo depois, em 1925, temos um outro desenvolvimento interessante. À época, a Constituição declarava que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos deveria ser leigo e que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial, nem teria relação de dependência ou aliança com o governo da União e dos estados. Foi quando o deputado Plínio Marques, pela influência do então bispo coadjutor do Rio de Janeiro, D. Leme, propôs as seguintes modificações constitucionais:

1) O Estado, comquanto separado da Egreja, reconhece que a Egreja Catholica é a religião do Povo Brasileiro em sua quase totalidade; 2) Comquanto leigo, o ensino, com caracter obrigatorio, ministrado nas escolas officiaes, não exclue das mesmas o ensino religioso facultativo. (IDEM, 1925: 106; Ruedell, 2005: 89).

As assim chamadas “emendas católicas” agitaram o cenário político-religioso de então. Diversos comitês favoráveis à liberdade de consciência foram criados em todo o país e as emendas foram derrubadas pelo voto de 60 deputados, de um total de 117, na Câmara Federal (Bica, 2006: 42-45).

A resposta dos luteranos às emendas pôde ser sentida nas reações ao posicionamento assegurado pelo então líder da bancada riograndense na Câmara dos Deputados, Getúlio Vargas. Conforme o editor do Mensageiro Luterano, Getúlio manifestara-se da seguinte forma ao jornal O País, expondo os inconvenientes das propostas de Plínio Marques: “... o Estado, cuja incumbencia principal, ainda que não exclusiva, é a manutenção da ordem e a defesa da justiça, não pode mostrar preferência em cousas religiosas” (Mensageiro Luterano, setembro de 1925: 80). Para o futuro líder nacional, portanto, era ilícita a intervenção estatal no campo da consciência individual. Dissera, também, Getúlio, que sua opção era por defender o ensino leigo nas escolas e também que acreditava que o ensino religioso deveria ficar por conta das famílias e dos ministros religiosos, além das “aulas particulares”. Afirmara, por fim, que a asserção de que o catolicismo era a religião da quase totalidade dos brasileiros era muito duvidosa. Segundo Vargas, o que havia era uma “sociedade” portadora de um catolicismo “cético-elegante” e uma “... grande massa do povo que ainda estava confundido num milagreiro culto fetichista, sob o rótulo de veneração dos santos” (Mensageiro Luterano, 1925: 80).

Em reação, as palavras do editor do Mensageiro Luterano dificilmente poderiam ser outras: “A attitude do Dr. Getulio nesta questão é biblica e a única que traz benção ao Estado. Que Deus o abençoe e sustente nesta attitude sem trepidar e nos dê muitos estadistas deste feitio. A bancada gaucha está honrando suas tradições gloriosas” (Id. ibid: 80).

Além do editor, também a diretoria do Sínodo manifestou-se por telegrama em apoio a Getúlio:

Exmo. sr. Dr. Getulio Vargas, leader bancada riograndense Camara dos Deputados:
Abaixo assignados, representantes Synodo Evangelico Lutherano do Brasil, protestam contra emenda reforma constitucional Plinio Marques relativa ensino religioso nas escolas. Pedimos V. Exa. Continue acção louvavel para guardar na constituição completa separação da Egreja e do Estado, livre exercicio de cultos e ensino leigo nas escolas, principios indispensaveis á prosperidade e progresso da Republica.
Assignado
Conrado Lehenbauer, presidente
Paulo Schelp, thesoureiro (Id. ibid: 80)

Quando, todavia, em 1934, sob outras condições, já como chefe de Estado, Getúlio “afrouxou” seu posicionamento favorecendo a ala católica, encontrou resistência e crítica entre os luteranos. Então, já à época do qüiproquó com a Coligação Pró-Estado Leigo, Hassse escreveu lamentando a diferença do Getúlio de 34 daquele de dez anos antes, que, para o pastor, demonstrara um espírito liberal, era um batalhador contra as pretensões do catolicismo romano e um admirador de Lutero a ponto de batizar seu filho com o mesmo nome. “A política faz os homens mudarem de opinião”, asseverava Hasse. O “remodelador da República”, diferentemente do “pae do jovem Luthero” e “leader gaucho” de 1925, precisara nos últimos quatro anos fazer concessões aos ultramontanos, “... aos quais o Luthero de outróra nenhuma concessão fez” (Mensageiro Luterano, 1934: 54-55).[6]

De qualquer forma, todavia, Getulio Vargas permanecia, para Hasse e os luteranos, sendo uma “potestade superior ordenada por Deus” e “para que Deus lhe [desse] uma visão clara” era necessário inclusive que se orasse por ele:

Todavia, o sr. Dr. Getulio Vargas é hoje o Chefe da Nação ordenado por Deus (Rm. 13:1) e como tal nós Lutheranos saberemos honrá-lo. Havemos de orar por elle, para que o seu governo seja um governo de paz e de prosperidade, para que Deus lhe seja um alto amparo e esconderijo e o abençoe (...).Vemos nelle o representante de Deus no Estado. O facto de o seu governo ter feito tantas concessões ao antichristo de Roma, compromettendo gravemente a liberdade de consciencia por approveitarem os padres para os seus fins imperialisticos-religiosos os referidos favores e unir de certo modo o Estado e a Igreja, é por nós reconhecido como um verdadeiro aviso da parte de Deus. Nos annos decorridos não soubemos muitas vezes prezar bastante a liberdade de consciencia que possuiamos no Brasil. Deus então fez com que ella fosse um tanto restringida para compreendermos donde cahimos. Tanto mais queremos prezar a liberdade que nos resta, apegando-nos mais do que em qualquer tempo ao Evangelho de Christo (Mensageiro Luterano, 1934: 54-55).

A visão clara que Hasse anelava para Getúlio seria, obviamente, a de não se dobrar ao poder católico e de permanecer lutando pela separação entre Igreja e Estado. Ulteriormente, como se vê, a idéia da separação entre Igreja e Estado não era propalada a partir de ideais republicanos ou modernizantes, mas sim com vistas a que o Estado não intervisse na pregação da verdade confessional luterana. Era propalada também porque, com tal separação, o maior opositor ao protestantismo no Brasil estaria enfraquecido, a Igreja Católica. Há, note-se, um sistema de crenças a embasar tais práticas e discursos, legado de Lutero e de seus companheiros, que deve ser entendido como externo a uma visão laicizante da sociedade.

5. Sobre o Sínodo Luterano do Brasil, o protestantismo e a modernização: algumas discussões a partir de Ernst Troeltsch

Em um pequeno escrito do ano de 1906, publicado em inglês sob o título Protestantism and progress, the significance of Protestantism for the rise of the modern world (Protestantismo e progresso, o significado do protestantismo para o surgimento do mundo moderno), Ernst Troeltsch (1986) lança algumas idéias que podem iluminar nossa discussão e de alguma forma colaborar no desfecho da problemática que aqui apresento.

O argumento central de Troeltsch é o seguinte: as reformas religiosas do século XVI, apesar de não estarem relegadas à Idade Média, não continham os fundamentos da vida moderna, os quais revelar-se-iam apenas com o iluminismo e pela influência não de Lutero ou Calvino, mas de grupos anabatistas, místicos e humanistas.[7]

Conforme o argumento, a reforma foi um momento de transição que continha elementos modernos, mas que era essencialmente uma modificação, não uma rejeição, do medievalismo, uma vez que sua preocupação central era com a antiga questão da certeza da salvação (Vide ponto 3 acima). Para Troeltsch, assim, a reforma foi como que um “segundo florescer” da Idade Média, o qual durou duzentos anos e enfraqueceu os “jovens brotos do novo mundo” que ali vicejavam. O que era realmente moderno na reforma só pôde vir à tona, nesse sentido, depois que o primeiro protestantismo clássico se havia enfraquecido (Ibid.: 41-42, 51-52).

Deve-se, então, diferenciar entre um protestantismo antigo (Alt-) e um moderno (Neuprotestantismus). Internamente ao antigo, Troeltsch vê menos o luteranismo e mais o calvinismo como uma expressão progressista, permanecendo este mesmo assim na esfera do “antigo protestantismo”. Nessa ótica, ao passo que na antropologia calvinista impõe-se o homem eleito que estrutura o mundo, na luterana, quem conta é o homem salvo pela graça, fora do mundo. No protestantismo moderno, de outro modo, a herança da reforma estava já tão transformada que era possível assimilar elementos do humanismo, do anabatismo e do misticismo, movimentos originalmente separados e mesmo hostis. Nesse sentido, a modernidade transformou o protestantismo, e não o contrário (Ibid.: 38, 43).[8]

A negação de que o protestantismo clássico tenha embasado o mundo moderno advêm das características atribuídas por Troeltsch à vida moderna surgida na Europa e nos Estados Unidos. São elas: o Estado secular e a ciência secular livres da autoridade eclesiástica; a limitação do interesse e do otimismo humanos ao mundo presente; e a submissão de toda pretensa autoridade à convicção do indivíduo. Nesse sentido, foi somente o iluminismo que possibilitou a emancipação de grupos e indivíduos do controle religioso externo. O protestantismo de Lutero e Calvino, de outro modo, manteve os ideais medievais de uma sociedade autoritária centrada na Igreja e por ela dominada, e o fez ao perpetuar as crenças de que os seres humanos estão apenas de passagem por esta vida terrena e de que apenas a Igreja pode dispensar a graça para que se chegue ao destino celestial. Ademais, ainda que tenha havido um enfraquecimento significativo do papel dos sacerdotes na administração dos sacramentos que conferem a vida eterna, nem Lutero e nem Calvino abandonaram a idéia de uma civilização cristã, ancorada na Igreja e preservada pela ação coerciva do Estado, traço que permanecia como herança da sociedade medieval. A Igreja como sendo o órgão sobrenatural da salvação, o qual interpreta puramente a Bíblia infalível; a direção da sociedade pela combinação da Igreja e do Estado; a indivisibilidade do Corpus Christianum, assegurada ao menos por cada Igreja na esfera colocada sob sua jurisdição pelo governo civil na Europa; todos estes eram interesses centrais em ambos os lados do Altprotestantismus.

A questão da moderna relação entre Igreja e Estado simplesmente não existia ainda. Para os protestantes clássicos, de fato, Igreja e Estado não eram duas organizações distintas, mas apenas retinham funções diferentes em um corpo unido e indivisível. A esfera que hoje pensamos como Estado era sim necessária para manter o mundo como a boa criação de Deus e, por causa do pecado, podia e devia utilizar da espada quando preciso. E veja-se, assim, que nessa ótica o que fizesse o Estado, o deveria fazer por responsabilidade cristã, idéia externa ao universo moderno que afirma uma civilização independente da Igreja, na qual a intolerância e a infalibilidade divina e eclesiástica dão lugar à tolerância e à relatividade, sustentadas em termos de uma humanidade cujos interesses e confiança otimista estão restritos à existência terrena. Trata-se, portanto, da oposição entre uma moderna civilização independente da Igreja e uma “civilização de autoridade” com bases medievais (Ibid.: 22-24, 43-45, 57, 62).

Troeltsch ressalta, também, o que é para nós importante, o específico do luteranismo em relação ao calvinismo e a racionalização das condutas por este implementada, na qual o autor e também Weber viam alguma ligação com o mundo moderno. Vale a citação de Troeltsch:

O Luteranismo pensa mais emocional e idealisticamente, a partir de uma ação puramente interna e espiritual da palavra divina. Ele prescinde de qualquer ordem eclesiástica por si só especial, particular e independente, destinada a assegurar a aplicação prática da palavra de Deus e a obrigar com todas as garantias a autoridade civil a segui-la. Seu objetivo é simplesmente colocar a pura palavra de Deus no castiçal, e, em relação a tal ofício, precisa apenas prover a pregação pura da palavra e a administração dos sacramentos. Na realização deste objetivo, o luteranismo, na verdade, não rejeita a aplicação da força; mas deixa todo o restante à ação automática do espírito que resplandece da palavra. E se a autoridade secular se recusa a submeter-se à palavra, o luteranismo, então, sujeito à vontade de Deus, suporta pacientemente os cruéis ataques de Satanás, que está somente muito ávido a tentar funcionários públicos e políticos à cobiça e arrogância, ou à indiferença. Esse idealismo era uma característica pessoal marcante de Lutero e, tendo nele sua origem, continuou a ser influente durante todo o período ortodoxo, mas está, sem dúvida, também relacionado ao respeito conservador de Lutero pela autoridade e ao todo do desenvolvimento absolutista nos territórios alemães (Ibid.: 46).[9]

No caso do luteranismo clássico, assim, Deus é a causa remota das autoridades instituídas, cujos poderes direta ou indiretamente constituídos têm origem divina. Às autoridades, as pessoas devem, por isso, obediência incondicional. O luteranismo clássico é, assim, plenamente conservantista e quer-se politicamente neutro, no que foi favorecida a passagem da autoridade estatal das ordens privilegiadas para um absolutismo territorial nos territórios alemães (Ibid.: 63).

Também o ascetismo característico da civilização medieval permanece no protestantismo clássico, que manteve uma determinação da vida terrena pela antítese entre céu e inferno. Nesse sentido, se o protestantismo aboliu o monasticismo e a monasticização do clero, não o fez por reconhecer nos bens e valores seculares fins em si mesmos, mas porque viu nessa retirada externa do mundo uma simplificação de tarefas que apenas encorajava a ilusão do mérito e da cooperação com a graça de Deus. O mundo é, nessa ótica, apenas a esfera ordenada por Deus para a ação humana, mas que deve ser aceita de modo submisso. É o lugar de dor e sofrimento no qual o ser humano é constantemente relembrado das conseqüências do pecado. As alegrias que aqui se tem são apenas ecos da felicidade original da criação. Trata-se, assim, tomando a expressão de Weber, de um “ascetismo intra-mundano” que não é menos ascético por não manter a vida monástica. No primeiro luteranismo, principalmente, a conseqüência dessa perspectiva é a transferência de toda a esperança humana ao bendito mundo vindouro e o contentar-se com a situação de martírio neste mundo (Ibid.: 47-50).

Nessa perspectiva, se o protestantismo teve um papel no surgimento do mundo moderno, o exerceu indiretamente, acidentalmente e mesmo contra sua vontade (Ibid.: 41). A reforma protestante, na verdade, apenas removeu algumas barreiras e catalisou impulsos cujas fontes jaziam fora dela mesma.

Quero sustentar, então, a partir de Troeltsch, que o Sínodo Luterano do Brasil representa um tipo de sobrevivência desse luteranismo da reforma do século XVI e dos posteriores desenvolvimentos da ortodoxia luterana durante o século XVII. É, ainda nos dias de hoje, um exemplo de permanência e recriação daquele Altprotestantismus. A imigração dos alemães saxões para os Estados Unidos e a conseqüente fundação do Sínodo de Missouri, no contexto de um despertamento religioso que agitou parte da Europa em meio à aridez do racionalismo do século XIX, constituíram um esforço de reafirmação e resgate das idéias ortodoxas dos séculos XVI e XVII. Naquela conjuntura os saxões calcaram as bases de seu sistema de crenças em uma referência retroativa às verdades absolutas construídas nas doutrinas ortodoxas. De um modo geral, os discursos e práticas do Sínodo de Missouri e de seu afiliado brasileiro são ecos das práticas e discursos do período reformatório, reafirmados justamente na contramão da modernidade e de suas políticas, bem como em reação ao domínio do “anticristo romano”.

Se há algo de moderno no protestantismo do Sínodo Luterano é apenas sua intelectualização, talvez racionalização, mas no sentido da sistematização das crenças e da busca de justificar racionalmente a verdade das doutrinas reveladas por Deus. Trata-se, no fundo, de um argumento autoritativo que, é verdade, estava já bem presente na teologia medieval pela influência de Aristóteles e dessa forma não constituía algo assim tão moderno, nem para o caso europeu.

Por outro lado, os luteranos do Sínodo apresentam traços de modernidade quando deixam ao campo individual a política e diferem entre as esferas espiritual e secular. Nesse caso, vê-se de fato que a Igreja não mais regula o século. Isso, todavia, consiste numa conclusão a que se chega pelas vias empíricas da análise dos resultados das práticas sociais, pois em termos de cosmologia, vale internamente ao luteranismo antes obedecer a Deus do que aos homens. Por isso, ainda que dispostos a perseverar em meio às provações terrenas, também precisavam instar Getúlio à verdade e às suas responsabilidades diante de Deus, do qual provinha a autoridade para governar. E, nesse sentido, ao atribuírem autoridade divina ao governante, os sinodais não se autodeterminavam ao modo moderno, mas abriam mão das rédeas de seus destinos em um legítimo exemplo de visão de mundo ancorada em um modelo de civilização de autoridade. No que tange a um processo de individuação, assim, os sinodais pertenciam ao grupo, e o espaço individual era bastante reduzido. As relações eram de tipo comunitário: menos Gesellschaft (sociedade) e mais Gemeinschaft (comunidade).

Nessa ótica, se no antigo modelo protestante da reforma entrevia-se uma tal civilização de autoridade, ancorada em Deus e na Bíblia, na qual Igreja e Estado cooperavam no sentido estrito da palavra para a manutenção da ordem do mundo, no modelo eclesiástico confessional ortodoxo do Sínodo Luterano do Brasil, sobrevivência do anterior, o Estado era relegado a um segundo plano com vistas a uma inserção religiosa na esfera do social por parte da Igreja, uma missão religiosa em uma sociedade entendida também como sendo regulada divinamente. Ou seja, se no modelo de civilização orientado pela Igreja, a autoridade e a salvação provinham da Igreja e o Estado era co-optado a fim de administrar o mundo; no modelo do Sínodo Luterano, a salvação e a autoridade espiritual provinham também da Igreja considerada verdadeira, ao passo que o Estado e a participação política efetiva eram evitados com vistas a uma inserção religiosa no social para a salvação da humanidade.

Considere-se também, nesse contexto, a influência da conjuntura estadunidense na qual foi formado o Sínodo de Missouri, igreja-mãe que ditava o padrão identitário dos luteranos sinodais brasileiros.[10] O relativo isolamento da condição imigrante que reforçava seus traços comunitários e a ortodoxia construída em oposição às políticas da modernidade contribuíram para a construção de uma visão tradicional do mundo político e de práticas políticas também tradicionais. Nesse sentido, tanto a conjuntura estadunidense, quanto a brasileira possibilitaram o acionamento dos repertórios ortodoxos do século XVI. No Brasil – bem como na América Latina de um modo geral, veja-se o argumento de Bastian (2007), pode-se sustentar que, de um lado, os traços oligárquicos e autoritários que permaneceram no contexto republicano e, de outro, o peso da influência da Igreja Católica constituíram um solo fértil para a adoção de discursos e práticas políticas não-modernas, em termos troeltschianos, por parte dos demais atores sociais.

Por fim, vale então retornar ao pastor Eurípedes Cardoso de Menezes. Nascido em Campinas, Menezes, cujo sobrenome destoava dos demais sobrenomes germânicos dos pastores do grupo, serviu apenas três anos ao Sínodo Luterano do Brasil, entre 1933 e 1935. Antes disso fora pastor presbiteriano. Estudara teologia e filosofia, tendo sido diretor de educação da Associação Cristã de Moços e também pastor em Lambari, MG. Menezes renunciara, contudo, ao pastorado por discordar das igrejas reformadas, tendo então estudado direito e ingressado no Foro da Capital. Sua vocação era, todavia, “o talar das Sagradas Letras e celebrar no altar do Senhor”. Ouvindo da organização da primeira congregação luterana na capital federal, procurou o rev. Hasse e dele recebeu um “curso de revisão theologica” durante um ano. Depois disso, após quatro dias de exame oral e escrito diante dos professores do Seminário Concórdia em Porto Alegre, instituição de formação dos pastores do Sínodo, Menezes foi aprovado e, então, ordenado e chamado como segundo pastor da Congregação da Paz, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. No breve tempo em que esteve entre os luteranos, o pastor Menezes foi bastante ativo e colaborou regular e vibrantemente com o pastor Hasse na produção de textos para o Mensageiro Luterano. Depois disso, abandonou também a Igreja Luterana e filiou-se à Igreja Católica (Mensageiro Luterano, 1933; Warth, 1979: 289).

Segundo uma abordagem comumente feita pelo viés da teoria da secularização, pode-se argumentar que Menezes rompeu a tradição grupal para sair em busca de uma religião de foro pessoal, dando exemplo dos processos da modernidade. De outro modo, desde o que temos argumentado até aqui, pode-se também compreender sua trajetória como uma busca retroativa pela tradição e por uma verdade absoluta e autoritativa. A própria rota tomada é reveladora: do calvinismo para o luteranismo e para o catolicismo. Menezes, penso eu, estava também mais para o medievo que para a modernidade.

Algumas breves considerações teóricas

Clifford Geertz (2006), em um texto recente em que discutiu os temas da religião e da modernidade, tratando também de questões abordadas por Weber, afirmou que o calvinismo representou, no contexto das reformas, uma tentativa diferente e original de dar um sentido religioso, diga-se um sentido último, a uma situação material transformada, uma tentativa de interpretar uma série emergente de realidades sociais nos termos de uma tradição revisada por intermédio de interpretação cultural. A resposta calvinista produziu sentido cultural em uma situação inédita, em uma paisagem de relações sociais modificadas. Nessa perspectiva, a racionalização econômica emergente representou uma força estimulante que incitou ao ativismo religioso e à mudança doutrinária, que por sua vez também retroestimulou mudanças econômicas e políticas. Creio ser essa uma boa ótica para percebermos as relações entre protestantismo e modernidade, também no Brasil.

Mudanças e novas situações provocaram respostas em práticas e discursos entre os sínodos luteranos de Missouri e do Brasil. E essas respostas constituíram uma força contrária, em princípio, à modernidade. Se tais práticas e discursos podem ter um efeito secularizante ou laicizante em termos macrosociológicos, isso pode ser sustentado somente em tempo e espaço externos ao caso que analisamos, à semelhança das conseqüências inconscientes do protestantismo do Dezesseis de que falaram Troeltsch e Weber. Tal efeito modernizante, além disso, não deve ser pensado como irreversível. Veja-se, por exemplo, o incremento das reações fundamentalistas, protestantes ou não, em vários cantos do planeta. Há, de fato, um protestantismo vivo e saudável atualmente que nada ou pouco retém do que pode ser dito moderno.

Diversas análises apontam para a especificidade do caso brasileiro e a inadequação, para este, de um aporte irrestrito pelas vias do paradigma da modernização como utilizado para os casos da Europa e dos EUA.[11] A diferença de fundo é histórica e óbvia: o Brasil não experimentou as mudanças estruturais pelas quais os europeus passaram entre os séculos XVI e XIX. Nossa modernidade é diferente da deles e, como sustentou Sanchis (1997), convive com a pré- e a pós-modernidade, principalmente em se falando em religião.

O caso que estivemos analisando, em perspectiva de tempo longo, a partir do evento que envolveu o Sínodo Luterano do Brasil e a Coligação Pró-Estado Leigo é apenas um dos exemplos dessa situação plural, mas não apenas moderna, que o Brasil experimenta e que precisa de tratamentos teóricos que não estejam nem totalmente encantados nem fiel e ideologicamente moldados por aportes ancorados em uma percepção unilateral do paradigma da modernização.

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Notas

[*] Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde é professor substituto de Antropologia da Religião.

[1] É o que sugerem as informações que obtive dos sites: http://www.omensageiro.com.br; http://www.espiritismogi.com.br/; e http://www2.uol.com.br/guiacampina/.

[2] Estiveram em atividade no Brasil, naqueles tempos, outros quatro sínodos teuto-evangélicos: o Sínodo Riograndense (desde 1886), o Sínodo Evangélico Luterano de Santa Catarina, Paraná e outros Estados da América do Sul (desde 1905), a Associação de Comunidades Evangélicas de Santa Catarina e Paraná (desde 1911) e o Sínodo Evangélico do Brasil Central (desde 1912). Tais sínodos convergiram em 1949 fundando a Federação Sinodal, que em 1962 passou a chamar-se Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) (Prien, 2001).

[3] Compõem o Livro de Concórdia os seguintes escritos: os três Credos Ecumênicos, a Confissão de Augsburgo (1530), a Apologia da Confissão de Augsburgo (1530), os Artigos de Esmalcalde (1537), o Catecismo Menor (1529), o Catecismo Maior (1529) e a Fórmula de Concórdia (1577) (Livro de Concórdia [1580], 1981). As Confissões agrupadas no livro de concórdia representam a base a partir da qual a ortodoxia luterana se constrói.

[4] Antecipa-se já aí a distância entre tal sistema de crenças e concepções modernas que tendam à individuação e à secularização.

[5] Sobre Martin Stephan e o Stephanismo, ver, p. ex., Forster (1953) e Todd (2000), bem como Huff Júnior (2006).

[6] Pontue-se entretanto que, já desde os anos 20, conforme Ruedell (2005: 89), se a bancada republicana não concordava com o ensino religioso oficial obrigatório porque isso contrariava o princípio positivista do ensino livre, ela também não era contra o ensino religioso facultativo. O próprio Getúlio, quando explicou seu voto contra a emenda de Plínio Marques frisou, que “o ensino religioso facultativo era admitido e praticado de larga data nas escolas públicas do Rio Grande de Sul” (Ibid.: 89.).

[7] Os anabatistas receberam tal designação pela centralidade que davam ao batismo de adultos como selo da regeneração. Insistiam fortemente na relação pessoal com Deus e na liberdade de consciência e conservavam-se muitas vezes separados em comunidades livres. Como represália muitos foram perseguidos e mortos. As correntes ligadas ao misticismo, por sua vez, enfatizavam de um modo geral que há na alma humana uma fagulha do divino e que a luta humana deve ser a de fazer com que Deus nasça em sua alma, resultando daí as boas obras. Vale menção o misticismo neoplatônico fortemente presente na teologia de Agostinho e que teve ecos na teologia protestante, especialmente a luterana. Havia também uma tendência mística entre muitos escolásticos e alguns dos místicos tiveram inclinação ao panteísmo. Com o humanismo, por fim, sublinhava-se a necessidade do estudo sólido, da correção da ignorância, do retorno às fontes com novos métodos de interpretação gramatical. A presença do pensamento de Aristóteles era central, tendo também ecos no surgimento das ortodoxias protestantes no século XVII (Walker, 1967). Para Troeltsch, é principalmente nessas manifestações que deve ser vista alguma ancestralidade do mundo moderno, não no protestantismo da reforma.

[8] Percebe-se nesse argumento de Troeltsch as relações de proximidade e de um relativo afastamento quanto às teorias que seu amigo e colega, Max Weber, apresentou em textos como A ética protestante e o espírito do capitalismo (2000). Proximidade, dada a diferenciação entre Luteranismo e Calvinismo e suas influências por sobre o surgimento do mundo moderno, comuns aos dois autores; e um certo afastamento porque em Weber reforça-se a idéia do protestantismo como solo fértil para o mundo moderno e não o contrário, como destaca Troeltsch.

[9] Tradução do autor desde a versão em inglês: “Lutheranism thinks more emotionally and idealistically, of a purely inward and spiritual working of the Divine word. It dispenses with any special, detailed, independent Church-order of its own, intended to secure the practical application of the word of God, and with all guarantees intended to oblige the civil authority to follow it. Its aim is simply to place the pure word of God on the candlestick, and it needs, in respect of office, only a provision for the pure preaching of the word and the administration of the sacraments. In the realisation of this aim, indeed, it does not recoil from the application of force; but everything else it leaves to the automatic working of the spirit which shines forth from the word. And if secular authority refuses to submit to the word, then, submissive to will of God, it patiently endures the cruel assaults of Satan, who is only too eager to attempt secular officials and politicians to covetousness and arrogance, or to indifference. This idealism was a marked personal characteristic of Luther and, taking its rise from him, continued to be influential throughout the whole orthodox period, but it is also, no doubt, connected with Luther’s conservative respect for authority, and with the whole of the absolutist development in the German territories”.

[10] Veja-se também nesta edição da REVER a análise de Sandro Cerveira, que aponta, alternativamente ao que sublinho, para as afinidades entre o protestantismo e a modernidade, abordando também a influência do protestantismo estadunidense por sobre os traços modernos do protestantismo brasileiro, especialmente o de missão, composto justamente pela ala calvinista ou reformada.

[11] Veja-se, por exemplo, Jessé SOUZA. (org.) (1999), O malandro e o protestante, a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira; Paula MONTERO (1999), “Religiões e dilemas da sociedade brasileira”; tb., da mesma autora (2006), “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”; e Lísias Nogueira NEGRÃO (2005), “Nem ‘jardim encantado’, nem ‘clube dos intelectuais desencantados’”.