RIZZUTO, Ana-Maria
Porque Freud rejeitou Deus. Uma interpretação psicodinâmica São Paulo, Editora Loyola, 2002.

por Edênio Valle

É bem conhecida a posição decidida que o fundador da psicanálise sempre teve com relação à questão religiosa. Não se tratava apenas de sua opção pessoal quanto à fé ou não fé. Educado no judaísmo, muito cedo ele optou por um caminho muito distinto do que aprendera em seus anos de infância, junto à sua família que era religiosa. Após essa reorientação de fundo, ele procurou trilhar seu novo caminho de maneira conseqüente e honesta. O que chama a atenção, já desde muitos decênios, é a quase obsessão com que ele retorna ao assunto tanto em seus escritos teóricos quanto em suas agudas análises de casos clínicos, não excluída sua própria auto-análise. É de ato extensa a sua obra no que toca o tema religião. Este tema marca o início e o fecho de um pensamento que não recuou ante reformulações. Pode-se dizer que a religião é um dos fios condutores deste pensamento poderoso. Foi sobrepujado em ênfase apenas pelo da sexualidade, o seu outro grande objeto de preocupação. Por essa razão, muitos autores já tentaram explicar em termos da própria psicanálise a postura religiosa de Freud. Poder-se-ia até pensar que é difícil dizer algo novo a tal respeito.

Tanto maior a surpresa do leitor brasileiro que tomar em mãos o livro de Ana-Maria Rizzuto - Porque Freud rejeitou a Deus - recentemente traduzido ao português pela editora Loyola. A minuciosa interpretação feita por Rizzuto a respeito das raízes psicodinâmicas do ateísmo de Freud retoma não só as indicações anteriores, mas as integra e supera de modo magistral e elegante. Este livro é de fato uma obra de mestra. Rizzuto é conhecida nos meios psicanalíticos estadounidenses e europeus pela seriedade de seu trabalho científico e pela contribuição específica que trouxe ao estudo psicanalítico da religiosidade. Ela assume teoricamente as hipóteses das teorias das relações objetais, apoiando-se mais especificamente em D.W. Winnicott. Usa com liberdade e originalidade alguns dos conceitos seminais deste psicanalista inglês que também no Brasil começa a ser objeto de atenção por parte dos que se interessam por uma compreensão psicológica bem fundamentada da religiosidade humana. Mas, o que caracteriza sua pesquisa sobre o percurso que levou Freud a rejeitar tão radicalmente a idéia de Deus não é a discussão teórica dos conceitos da psicanálise. A atenção de Rizzuto se volta, em um trabalho de detalhada garimpagem analítica, é para os vínculos inconscientes e conscientes que Freud estabelece com as pessoas significativas que marcam sua infância, já na fase pré-edipiana. Cumulando uma lacuna que se deve ao próprio Freud – sempre mais preocupado em vincular a atitude religiosa aos laços estabelecidos na fase edipiana com o pai – Rizzuto traz dados interessantíssimos sobre suas vinculações com a mãe e com a famosa ama que o levava à Igreja Católica, para grande alegria do menino então de tenra idade. Há outros detalhes preciosos, do ponto de vista interpretativo, no material levantado por Rizzuto, no intuito de mostrar como o mundo de Freud estava marcado, em seus detalhes, por antigas experiências removidas no nível do inconsciente.

2. O raciocínio de Freud em favor de suas teses anti-religiosas, como sabemos é cerrado e complexo. Enfatizo que, para Rizzuto, a consideração em torno da formação da imagem de Deus de Freud não invalida a força de seus argumentos e teses científicas sobre a religião. Essa é uma questão que a Rizzuto prefere não afrontar, dizendo, porém, que diverge tão somente do reducionismo racionalista de Freud e não da psicanálise que ela cultiva há decênios na cidade de Boston, cidade que a adotou desde o dia em que teve de deixar sua pátria, a Argentina. Para Rizzuto é indispensável que olhemos com mais objetividade para a origem autobiográfica de alguns dos elementos constitutivos de algumas das hipóteses de Freud sobre a religião e a formação da imagem de Deus, como ela mesma demonstrou em seu famoso livro : "O nascimento da idéia do Deus vivo", de 1979. Tal visão levar a psicanálise de hoje, liberta das amarras do cientificismo, a concluir que o mais adequado seja não considerar apenas a fé religiosa como um resquício de medos e desejos infantis. Não é verdade psicologicamente falando que só o ateísmo seja indicativo de uma válida superação das ilusões e projeções que a criança cria porque carente de uma figura protetiva.

3. Não há como resumir aqui a análise feita por Ana-Maria Rizzuto do percurso, que eu chamaria tranqüilamente de "espiritual", do ateu Freud. Contento-me em apresentá-lo em breves pinceladas, advertindo o leitor para o caráter quase policial da investigação de Ana-Maria Rizzuto ao ir atrás das experiências infantis e juvenis que levaram Freud a desconectar-se de qualquer simpatia pelo mundo religioso.

Ela parte de uma visita que fez à exposição dos objetos pessoais de Freud que percorreu o mundo – passando, inclusive pelo MASP, de São Paulo – tornando conhecida a fantástica coleção de objetos de arte que Freud acumulou pacientemente durante toda a sua vida. São centenas de objetos preciosos, a maioria de origem oriental. Eles fizeram silenciosa companhia a Freud, especialmente em seu famoso consultório de Viena. Tornando-se objeto de sua contemplação cotidiana. Na exposição sobre Freud estava também um exemplar da mesma Bíblia Philipson que Freud recebeu de seu pai, no dia de seu 35º aniversário. Rizzuto surpreendeu-se pela flagrante semelhança existente entre os objetos de arte da exposição e as gravuras estampadas na Bíblia recebida de seu pai. Acaso? Não, seguramente, para alguém acostumado a ver o cotidiano desde seu significado mais profundo e seus moventes inconscientes.

Rizzuto decidiu-se a investigar mais a fundo aquela interessante coincidência. Ela examinou com atenção cada detalhe da vida do fundador da psicanálise, procurando aí as raízes de seu ateísmo militante. Ela demonstra que as experiências familiares vividas por ele no seio de sua família, com a mãe, o pai, a ama de leite etc tornaram psicologicamente impossível nele a formação de um Self capaz de "acreditar em" - como diria Winnicott -, e de aceitar relacionar com um Deus providente, por ele nunca vivenciado como "suficientemente bom". Ao criticar, em sua auto-análise as ilusões infantis e juvenis que foi reconhecendo em suas representações de Deus, Freud teria optado, segundo Rizzuto, por recusar em bloco a possibilidade de reconhecer a existência de Deus. Preferiu firmar-se em uma posição racional que para ele superava aquela "ilusão", tornando-a desnecessária. Da crítica daquelas ilusões ele, ao que parece, nunca logrou passar à sublimação e transformação dos desejos e medos infantis nelas expressos. Os vínculos mais profundos de "não acreditar em" permaneceram por baixo de sua cerrada argumentação teórica.

Rizzuto resolveu ir além. Não aceitou a tese racional de que "a religião perpetua a ilusão infantil de estar protegido por um pai bondoso" e de que "adultos maduros devem se libertar do anseio da infância por esse pai" (Rizzuto, 2002, 14 ). Ela "bisbilhotou" cada detalhe da biografia de Freud, buscando indícios que mostrassem que, por baixo de sua densa argumentação racional existiam vínculos inconscientes cuja raiz guardava ambigüidades ditados pelo inconsciente. Um ponto pouco conhecido e amplamente trabalhado por ela é dos laços de Freud com sua mãe, que propiciam uma visão nova de seus relacionamentos com o pai.

Nesta pesquisa, a mesma que ela, como psicanalista, está acostumada a fazer com seus clientes no divã, ela diz que sua busca foi guiada por "Freud mesmo...com suas teorias sobre a formação e a transformação das representações de Deus e as emoções ligadas a elas"[...] E conclui: "Suas teorias sobre a religião podem ser lidas como uma psicobiografia não propositada da sua transformação particular e impremeditada em um "judeu sem Deus". (p. 255).

Penso que no futuro a discussão psicanalítica em torno do dilema ateísmo x fé religiosa não poderá se fazer sem tomar a sério os dados trazidos neste livro. Que o confira o leitor mesmo.