ASSUNÇÃO, Paulo de.
“A Terra dos Brasis”. A natureza da América Portruguesa vista pelos primeiros Jesuítas (1549-1596), São Paulo: Annablume, 2001, 276 p.

por Ênio José da Costa Brito[*] []

O historiador Paulo de Assunção lançou, em 2001, pela editora Annablume “A terra dos Brasis”. A natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas (1549 – 1596)[1]. O livro passou despercebido do grande público, mas guarda riquezas.

Como os primeiros missionários se comportaram diante da natureza da terra brasílica? Como viram o mundo natural? Através da análise das cartas dos primeiros missionários, Assunção resgata a visão e compreensão dos loiolanos. O resgate é realizado gradualmente ao longo de treze capítulos, divididos em quatro partes.

A expansão marítima

Para o homem cristão medieval, a natureza criada por Deus era a chave de leitura para entender a si mesmo. No cuidado e no cultivo da natureza, ele prolongava a obra divina. “Recuperando o simbolismo emblemático da natureza na Idade Média, o pensamento cristão resgatará principalmente a imagem do Éden, paraíso terrestre original perdido, símbolo da esperança e da salvação delineado no Gênesis como contraponto de um mundo visível onde as imagens infernais e as vicissitudes impostas ao homem preponderavam”[2].

Após a expulsão do paraíso, a humanidade continuou sonhando com a possibilidade de voltar a ele, não sendo encontrado no território europeu, o paraíso foi procurado na Índia e em seguida na América. Na expressão de Sérgio Buarque de Holanda viveu-se, naquele período, uma psicose de um paraíso terreal. As descobertas marítimas possibilitavam fundir a propagação da fé cristã com a busca de riquezas e com valores do humanismo renascentista que surgia. Os jesuítas “navegantes da fé por terras desconhecidas”, compartilhavam dessa mentalidade e dessa movimentação. Diante da pluralidade simbólica e cultural do novo mundo deixavam transparecer uma visão da natureza ora perto do Paraíso, ora perto do inferno.

No período das descobertas marítimas, vamos encontrar os jesuítas profundamente envolvidos com o processo de restauração da Igreja que passara por uma aguda crise de credibilidade. A Companhia de Jesus aprovada, em 27 de setembro de 1540, pela Bula Regimini Ecclesiae expande-se, rapidamente, em Portugal onde conta com o apoio de João III. Portugal, ao assumir um importante papel na cristianização do mundo, torna-se um guardião da cristandade, resgata e universaliza a autoridade espiritual do cristianismo, colocando-a ao seu serviço. Portugal, no entanto, não conseguiu manter a hegemonia comercial, devido ao perfil deficitário da expansão marítima. Dívidas crescentes, colônias ameaçadas levou a Metrópole a ocupar de fato as terras coloniais. Daí, o projeto das Capitanias hereditárias, seguido da criação do Governo Geral. A opção pela estrutura econômica açucareira foi o “fio condutor e norteador do processo de ocupação”. “A vinda dos jesuítas para o Brasil coincide e é parte integrante do novo direcionamento da política econômica e administrativa portuguesa nas terras brasileiras”[3].

Os jesuítas não só perceberam a importância da posse da terra para a expansão da fé e do mercantilismo como a alteridade cultural e natural do Novo Mundo que a registraram em suas cartas.

A instituição epistolar jesuítica

Através das cartas dos primeiros missionários jesuítas pode-se conhecer a cultura dos Quinhentos e ainda obter informações sobre: “... a religiosidade do período; os usos e costumes dos índios; a formação político- administrativa da colônia; o desenvolvimento econômico; a política externa portuguesa, o estudo das línguas brasílicas; além de uma colaboração acentuada para a ciências naturais”[4].

Para analisar o discurso sobre o mundo natural presente nas cartas escritas pelos jesuítas faz-se necessário inserí-las dentro de uma visão de mundo e de um contexto de comunicação. Visão de mundo essencialmente religiosa, plasmada pelos Exercícios espirituais que levava os jesuítas a verem em Deus, o único sentido de tudo. As cartas, peça importante no sistema de comunicação da Companhia de Jesus, informavam os superiores maiores sobre a vida e a atividade dos missionários e, eram motivo de alegria e consolação entre os membros da Companhia[5]. Conhecedores do universo simbólico dos seus destinatários dentro e fora da Companhia, os jesuítas evitavam nas cartas e informações o excesso de detalhes e acentuavam as diferenças, a estranheza pela forma, cor, sabor e odor. “Destarte, as cartas formam composições significativas de um conjunto simbólico de experiências comuns que permeiam a vida européia, da qual o jesuíta, baluarte civilizacional , confere à decodificação do novo mundo uma interpretação crível”[6]. Sem dúvida, o conteúdo das cartas contribuiu para a elaboração de uma imagem mais correta das novas terras.

Uma conquista à luz da fé

As descobertas marítimas revolucionaram a cosmografia dos quinhentos. “A cristandade descobre a existência de um outro universo, povoado de não-cristãos até há pouco tempo inimaginável, mas desde a origem inferior, por não ser cristão”[7].

A cartografia náutica ao representar o novo orbis christianus, cria uma consciência geográfica global que rompe com a imagem de um universo harmonioso e de uma vida única. Lentamente, a cristandade se abriu para um amplo questionamento cultural e religioso. Buscou na natureza compreender as semelhanças e as diferenças entre o novo e o velho mundo. Os jesuítas, inspirados nos Exercícios espirituais, compreenderam a sua missão como cristianizar e aumentar o universo cristão. No novo mundo, sentiram-se como mediadores, como diretores espirituais que facilitavam o reencontro do novo com o velho, do temporal com o espiritual, da natureza e dos gentios com o criador. Os gentios por sua condição natural não tinham condições para optar pela salvação. “Nos discursos produzidos nas cartas, percebe-se que argumentação principal procura persuadir e demonstrar ao leitor que a ação missionária era possível e benéfica, por decorrência necessária. Todos os cristãos deveriam realizar a aproximação do gentio com Deus”[8].

Elementos da natureza foram utilizados como símbolos religiosos para estabelecer a relação com Deus. Assim, os missionários se apresentavam como agricultores, pastores que conduziam , à maneira do bom Pastor (Cristo), as ovelhas perdidas ao redil, que as convertia e as protegia do inimigo , o demônio. Os caminhos para conduzir as “ovelhas perdidas“ao redil da cristandade eram difíceis. Barreiras de todas as sortes precisavam ser vencidas : fome, privações, sede, frios,animais ferozes, injúrias e desânimos.

O hostil mundo animal ofereceu aos jesuítas as metáforas que necessitavam para apresentar o nativo próximo da natureza selvagem e distante da realidade européia. “Em suma, o mundo natural para os primeiros jesuítas era uma realidade cotidiana indissociável da verdade absoluta de que Deus tinha sido o seu criador e deveria ser louvado por isto. O espetáculo da natureza quando ocorria, se processava, principalmente em função e no âmbito do divino, que dava eco à ação missionária. Por outro lado, a natureza é algo que o loiolano tenta suportar, controlar ao vencer para a concretização do ato catequético”[9].

A expulsão do paraíso obrigou o ser humano a conquistar o mundo natural. Essa mentalidade de conquista impregnava a visão medieval. Os conquistadores e missionários através da posse e nominação do território procuram cristianizar a paisagem, dar uma identidade ao espaço. A ocupação do espaço rompe com o caos, com a natureza bruta e instaura a cultura, a cultura cristã. Imbuídos de uma visão medieval, os primeiros jesuítas viram e leram a natureza sob o prima da fé: a natureza fora criada por Deus para ser útil ao homem.

A terra, o clima, a fauna e a flora

As descobertas derrubaram inúmeras conjecturas sobre a vida, a fauna e a flora nas antípodas. Da idealização diante da exuberância do mundo natural passou-se lentamente para o desejo de incorporá-lo ao universo econômico europeu. A leitura jesuítica do mundo natural centrava-se, inicialmente, na terra, na sua habitabilidade e fertilidade que possibilitava a sobrevivência. Em seguida, ganhou contornos totalitários, o engenho humano é que conferia significado à terra, cultivando-a. O clima aparece com freqüência nas cartas, clima oposto ao da Europa mas, ameno, benigno e próprio para o cultivo agrícola. No entanto, os ares das terras equatoriais e subtropicais ao permitir a nudez perpetuavam os maus costumes e dificultavam as conversões.

As cartas se referiam também a fertilidade da terra que oferecia meios abundantes para a existência como tubérculos, legumes e frutas. Além da mandioca, alimento vital dos indígenas e missionários, o milho, a fava e o yeticopé. A cana-de-açúcar, moeda da terra, era plantada em quase todos os núcleos populacionais. Uvas, bananas, limões, laranjas e frutos exóticos completavam o cardápio dos missionários. A terra boa e sã auxiliava na cura das doenças, atividade à qual os jesuítas logo se dedicaram, curar o corpo e o espírito. A falta de recursos gerava uma estranha simbiose entre o saber indígena e o europeu. “O discurso jesuítico de maneira indireta contribuiu para o reconhecimento de novas espécies da flora medicinal e para a ampliação das técnicas de tratamento utilizadas”[10].

A fauna exótica e abundante oferecia alimentação básica e impressionava os missionários. Anchieta, numa carta ao Pe Diego Laynes ( 31 de março de 1560), apresentou um verdadeiro tratado da fauna brasílica no qual deu informações sobre: o tamanduá, a anta, o tatu, o gambá, a piranha, o lagarto, o jacaré, as cobras, os insetos e as formigas. “O exagero com que é delineado o contorno deste mundo animal ameaçador tem por objetivo não só relatar as dificuldades da sobrevivência num meio inóspito, mas sobretudo o de confirmar a possibilidade de domínio do jesuíta em sua batalha missionária”[11]. A terra, ainda inexplorada, poderia esconder riquezas minerais, sempre desejadas por conquistadores e missionários. Elas mobilizaram as primeiras investidas pelo sertão. A descoberta das riquezas naturais, especialmente do ouro, daria um grande impulso na colonização e na ampliação da cristandade.

Entre os méritos de A terra dos Brasis, quero destacar a utilização de fontes primárias pelo autor que não se contenta de obter informações de segunda mão; merece destaque a amplidão da pesquisa, o cuidado conceitual e o tratamento imparcial que deu ao estudo.

. A história da historiografia sobre a Companhia de Jesus desde seu início foi marcada por muitas polêmicas. Nota-se, recentemente, deslocamentos importantes no âmbito dos estudos históricos sobre os jesuítas, que passam a ser realizados no campo da história social e cultural e da antropologia histórica. Assunção ao inserir-se nesta perspectiva, escapa das renitentes limitações impostas por uma visão historiográfica dominante no século XIX, mas ainda presente em textos atuais, visão limitada à apologia ou ao antijesuitismo. Ao longo do texto, o autor oferece, ainda, pistas para uma percepção mais dinâmica das relações entre a metrópole e a colônia. Esta perspectiva começa a ser privilegiada nas pesquisas recentes.

Algumas considerações no âmbito teológico poderiam ser mais matizadas, como por exemplo, a questão da criação que é um pouco mais complexa do que a apresentada. Não deveria ser motivo de espanto, certos exageros nas descrições de viagens, o entendimento do gênero da correspondência epistolar explica e bem tais deslizes. O autor não teve oportunidade de entrar em contacto com o Curso Collegii Conimbricensis Societatis Jesu elaborado por professores do Colégio das Artes de Coimbra. Esses tratados comentam textos aristotélico-tomistas de cunho psicológico e eram utilizados na preparação dos futuros missionários. Ao lê-lo pode-se compreender melhor a mentalidade (forma mentis) e a cultura dos jesuítas que vieram para a Terra dos brasis[12].

Da leitura de A terra dos Brasis- a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas (1549 – 1596), saímos enriquecidos com uma compreensão mais refinada da Colônia e da visão de mundo dos primeiros missionários jesuítas. Visão gestada no interior de uma forte experiência religiosa que tinha seu centro nos Exercícios espirituais.

O esforço analítico realizado por Assunção para “compreender os primeiros jesuítas assim como eles compreendiam a si mesmos” é a garantia de uma leitura fecunda e instigante.

Notas

[*] Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião PUC/SP.

[1] ASSUNÇÃO, Paulo de. “A Terra dos Brasis”. A natureza da América Portruguesa vista pelos primeiros Jesuítas ( 1549-1596).São Paulo: Annablume, 2001.

[2] Ibidem , p.35.

[3] Ibidem, p.70.

[4] Ibidem, p.78.

[5] As Constituições viam nas cartas um instrumento importante para a união dos corações. Ver PECORA, Alcir. “Cartas à Segunda escolástica”, in: NOVAES, A., A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras/ FUNARTE, 1999,p.373 –414,

[6] ASSUNÇÃO, Paulo. Op. cit., p. 101.

[7] Ibidem, p. 114.

[8] Ibidem, p. 127.

[9] Ibidem, p. 143.

[10] Ibidem, p.225-226.

[11] Ibidem , p. 253.

[12] Ver o sugestivo trabalho de MASSIMI, Marina;PRUDENTE, André Barreto. Um incendido desejo das Índias. São Paulo: Loyola, 2002. Os autores apresentam um estudo sobre as cartas escritas entre os séculos XVI e XVII por jovens jesuítas, solicitando sua participação nas missões além-mar. O título das cartas é “Indipetae”(= pedido para o envio às Índias, sendo que por Índias entende-se genericamente, todos os âmbitos missionários da Companhia de Jesus” p.13)