Notas Preliminares para a Leitura do Livro
O Uso Ritual das Plantas de Poder

Brígida Malandrino[*] []

Introdução

As reflexões contidas neste pequeno texto são fruto da leitura do livro O Uso Ritual das Plantas de Poder. Temos como objetivo apresentar possíveis chaves de leitura para o livro, uma vez que ele é composto por 14 artigos de autores diferentes que, a princípio, não parecem guardar semelhança alguma entre si, a não ser pelo objeto comum - o uso ritual das chamadas "plantas de poder". Não temos a intenção de apresentar detalhadamente os artigos contidos no livro. A pergunta que nos fazemos é: os rituais e as plantas de poder são os únicos aspectos comuns que podemos encontrar nos vários artigos? Há um fio condutor no livro, um eixo no qual os artigos possam ser inseridos? Há, enfim, uma lógica dentro do texto?

Levantamos a hipótese de que há algumas linhas gerais e, mais do que isso, uma lógica interna no livro. Para tanto faremos, inicialmente, uma breve apresentação do que se entende por uso ritual das plantas de poder para, em seguida, mostrarmos as possíveis chaves de leitura.

O uso ritual das plantas de poder

Logo na introdução elaborada pelas organizadoras do texto, Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart, em parceria com Henrique Carneira, os autores definem o que entendem por plantas de poder, firmemente baseados em Castañeda: “... essas plantas funcionariam como veículos que possibilitariam aos homens entrar em contato com ‘forças’ ou ‘poderes’ e, que isto, por sua vez, permitiria que o aprendiz se tornasse um homem de conhecimento[1]. Por isso, as plantas de poder podem ser definidas desta maneira, na medida em que elas ampliam e aprofundam a visão e a percepção humanas cotidianas.[2] A utilização ritual destas substâncias, consideradas sagradas, propicia um poderoso efeito psíquico com baixas doses e com baixa toxidade, e como fazem parte da condição humana, são fundamentais para a organização de conjuntos simbólicos e rituais complexos, estando o seu uso manifesto em diferentes culturas e épocas. Os autores, após fazerem uma breve discussão do uso ritual, afirmam que:

Tais rituais são simbólicos e criam realidades, isto é, possuem a capacidade de interferir no real. Um ponto comum a todos esses trabalhos é que a realidade extraordinária destacada e evidenciada nos rituais analisados é definida justamente, a partir do consumo das plantas de poder. É nesse sentido que podemos afirmar que o uso de substâncias psicoativas em contextos rituais permite às sociedades ou aos grupos refletirem sobre seus dilemas, bem como orientar sua ação para o encaminhamento e a resolução de conflitos. Ao mesmo tempo, percebemos que o uso ritual das plantas de poder revela-se extremamente eficaz no que se refere à fusão do real experimentado e vivenciado acerca desse mesmo real. Dito de outro modo, as plantas de poder permitem fundir, nos ritos onde elas são utilizadas, práticas e crenças, atitude e pensamento, subjetividade e coletividade.[3]

Podemos perceber, frente ao que foi exposto, que o uso ritual das plantas de poder está, dentro destes grupos culturais, muito além de um uso simplesmente recreativo. Tal uso situa-se na dinâmica cultural destes grupos, estando presente, muitas vezes, nos seus fatos fundantes, o que pôde ser observado no relato dos mitos. Tal fato nos remete à nossa primeira chave de leitura: a necessidade de olharmos o uso ritual das plantas de poder a partir das culturas estudadas.

O uso ritual das plantas de poder visto por dentro

Grande parte dos usos e das religiões apresentadas é feita por religiões minoritárias, que detém pouco poder e que, por vezes, podemos supor, sofrem preconceitos e sanções por conta disso - é o que pôde ser notado nos vários artigos que abordam a questão da proibição do uso de substâncias psicoativas por estes grupos. Tal situação suscita uma primeira discussão, presente no artigo de Glenn Shepard Jr. a respeito do significado que as plantas de poder tem para os grupos que as utilizam e para a sociedade ocidental:

... percebe-se como os termos ocidentais são inadequados para representar os conceitos indígenas. Não existe um termo Machiguenga equivalente a “psicoativo”, definido no dicionário American Heritage como “[droga] que afeta a mente os processos mentais” (tradução livre). Essa definição manifesta claramente a dicotomia cartesiana entre corpo e mente, separando processos físicos de processos psíquicos ou mentais.[4]

O uso ritual das plantas de poder deve ser observado dentro do conceito de empatia, isto é, do olhar o outro dentro da sua própria lógica (dá lógica do outro), respeitadas as possíveis diferenças. Ao agir desta

maneira é possível, àquele que se debruça sobre estes usos, conhecer as concepções de mundo presentes nestas diversas culturas. Isso gera a possibilidade de conhecermos o outro, sem, necessariamente, aderirmos às suas práticas. Cita-se Gross, quando ela fala a respeito da empatia:

Eu defino empatia como um processo de duas etapas. Primeiro ela envolve o abandono temporário de nossa própria visão de mundo, de nossos valores e preconceitos no maior nível possível, enquanto estivermos envolvidos no estudo. O objetivo do estudo deverá ser abordado com a mente aberta, o que inclui a possibilidade de deixar a situação de aprendizado transformado pelo novo conhecimento. Segundo, ela implica em penetrar de forma criativa no âmago do fenômeno investigado. Não podemos nos tornar alguém de dentro, contrariamente às expectativas de alguns que desejam se apropriar completamente das percepções e das visões de um adepto. Mas podemos e devemos entender e avaliar porque os adeptos se sentem compelidos por suas visões e comportamentos. Os estudiosos da religião tentam se colocar como se eles comungassem do ponto de vista em discussão, muito embora eles possam não concordar.[5]

Se o sentido desta utilização fosse compreendido a partir da própria religião ou cultura, talvez não houvesse questionamentos a respeito do uso das plantas de poder por determinados grupos. Cremos, porém, que, mais do que isso, há um outro fator que colabora para que estes usos sejam questionados pela cultura dominante: todas as religiões apresentadas no texto são populares.

A questão do poder e a cultura popular

A cultura popular aparece ora como fenômeno de reprodução social, ora como elemento de transformação, a contestação que se concretiza através de desordem simbólica. Isso se dá na medida em que a cultura popular é entendida como elemento social que se organiza em uma relação de poder, o qual se vincula à própria estruturação da sociedade em classes e camadas sociais. É de poder a relação estabelecida entre a sociedade global e as manifestações de cultura popular. Há uma tentativa de submeter a cultura popular à hegemonia das culturas dominantes, mas pode-se perceber que há focos de resistência representados por estas culturas e povos, que, apesar de todas as dificuldades que enfrentam atualmente, lutam para ter o direito e continuar a fazer uso de substâncias psicoativas por eles consideradas sagradas. Segundo Montero:

... a grande ambigüidade que caracteriza a cultura popular: o que faz sua fraqueza – a fragmentação do discurso, a não-universalidade de sua consciência, a absorção dos valores dominantes – é o que define sua força; porque ela é particular e fragmentada, a produção discursiva e as práticas dominadas não são simplesmente reprodutoras dos valores hegemônicos.[6]

O que podemos afirmar é que estas culturas e religiões, que estes povos, em suma, ao lutarem pela manutenção da utilização das plantas de poder, isto é, de substâncias consideradas ilícitas, fazem mais do que isto. Na verdade, buscam sobreviver, tentam seguir professando sua religião, de maneira que não sejam cooptados pela cultura dominante.

Neste sentido, é fundamental manter a discussão a respeito da legalidade destas plantas, uma vez que o entendimento que estes grupos tem a seu respeito é completamente outro, como afirmamos no tópico anterior. Como colocado acima, tais religiões bricolam e buscam sobreviver, principalmente nas fragmentaridades e nos espaços vazios, o que nos leva para o nosso próximo tópico: o uso das plantas de poder no contexto da nova religiosidade na era pós-moderna.

A religiosidade no contexto da pós-modernidade

O que notamos é que algumas religiões, em especial o Santo Daime, estão em expansão[7]. Uma expansão que retira a religião daimista do contexto da floresta para inseri-la em um contexto urbano, presente nas grandes metrópoles, o que torna necessário falarmos sobre a questão das novas religiosidades, ou melhor, a religiosidade na pós-modernidade.

Vivemos atualmente em um momento paradoxal, no qual os pólos opostos coexistem em diversas áreas do conhecimento e também no campo das religiões. Observam-se inúmeras manifestações religiosas que marcam a crise da racionalidade, ao mesmo tempo em que se afastam dos modelos tradicionais. Segundo Queiroz[8], uma das características da vivência religiosa atual é o seu caráter migratório, no qual o homem transita por diversas religiões, cultos e crenças, buscando compor um sentido para a sua existência, mesmo que formalmente não esteja vinculado a alguma religião. Coexistindo paradoxalmente com esse tipo de vivência encontra-se, ainda presente, o fundamentalismo, tanto nas instituições tradicionais quanto na vivência de novas religiões que, em troca da fidelidade dogmática, oferece algumas recompensas.

Estas religiões, que migram para as metrópoles, vêm sendo incorporadas aos usos urbanos e colocadas dentro da vivência de uma nova religiosidade, o que é reflexo da pós-modernidade. A religião não define, expressa ou imputa o sentido global da vida coletiva cotidiana. Há pluralismo religioso radical, coexistem legitimamente e competem entre si instâncias diversificadas de imputação de sentido para a vida coletiva e individual, ao mesmo tempo em que o indivíduo torna-se raiz, núcleo e origem da própria vida social e religiosa. O indivíduo constrói sua identidade religiosa apropriando-se dos elementos necessários à satisfação de suas necessidades. Este é, a meu ver, um campo propício para o aparecimento de novas religiões e de ressignificação de outras, como as religiões da floresta estarem presentes nas grandes metrópoles. Tal situação poderia lançar novas luzes sobre o tipo de religiosidade vivida hoje em dia, fundamentalmente centrada no individuo e livre da autoridade institucional hierárquica? A fragmentariedade não se encontra somente na lógica da religiosidade popular, na nova religiosidade pós-moderna, mas também na própria identidade, assunto do nosso próximo tópico.

A questão da identidade

As velhas identidades estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, visto, até então, como um sujeito unificado. A crise de identidade faz parte de um processo mais amplo, que está deslocando as estruturas e os processos centrais das sociedades modernas, abalando os quadros de referência que davam estabilidade aos indivíduos. Hall afirma que as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas, abalando a idéia de que somos sujeitos integrados[9].

O sujeito está se tornando fragmentado, composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, muitas vezes contraditórias ou não-resolvidas. O processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se provisório, variável e problemático. As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas:

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.[10]

Portanto, sem os apoios das instituições sociais, fato presente na pós-modernidade, o sujeito permite-se uma composição transitória que afeta sobremaneira a sua identidade cultural, gerada através de identificações, vendo surgir, cada vez mais, identidades híbridas, pois há uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação.

Considerações finais

Como podemos perceber, o livro suscita uma série de discussões a respeito de diversos aspectos, trazendo, para a ordem do dia, temáticas que muito interessam às ciências da religião. Fizemos um recorte, o que não significa que demos conta da totalidade das abordagens de discussão sobre o uso ritual das plantas de poder. Tal discussão ainda pode ser feita dentro do enfoque psicológica, médico e jurídico, dentre tantos outros.

Bibliografia

GOULART, S. L. Contrastes e continuidades em uma tradição religiosa amazônica, In: O uso ritual das plantas de poder, Campinas: Mercado das Letras, 2005.

______________; LABATE, B. C.; CARNEIRO, H. Introdução, In: O uso ritual das plantas de poder, Campinas: Mercado das Letras, 2005.

HALL, S. Identidades culturais na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DPCA Editora, 1997.

LABATE, B. C. Dimensões legais, éticas e políticas da expansão do consumo da ayahuasca, In: O uso ritual das plantas de poder. Campinas: Mercado das Letras, 2005.

MONTERO, P. Da doença à desordem: a magia da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1985.

QUEIROZ, J. J. As religiões e o sagrado nas encruzilhadas da pós-modernidade. In: Interfaces do Sagrado – Em véspera de milênio. São Paulo: CRE-PUC/SP-Editora Olho d’Água, 1996.

GROSS, R. M. Feminismo e religião: uma introdução. Boston: Beacon, 1996.

SHEPARD JR., G. H. Venenos divinos, In: O uso ritual das plantas de poder, Campinas: Mercado das Letras, 2005.

Notas

[*] Psicóloga especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP e doutoranda em Ciências da Religião pela PUC/SP.

[1] S. L. GOULART; B. C. LABATE; H. CARNEIRO, Introdução, In: O uso ritual das plantas de poder, pp. 33.

[2] Ibid., p. 33-34.

[3] S. L. GOULART; B. C. LABATE; H. CARNEIRO, Introdução, In: O uso ritual das plantas de poder, p. 38.

[4] G. H. SHEPARD JR., Venenos divinos, In: O uso ritual das plantas de poder, p. 189.

[5] R. M. GROSS, Feminismo e religião, p. 4.

[6] Paula MONTERO, Da doença à desordem, p. 6.

[7] Cf. S. L. GOULART, Contrastes e continuidades em uma tradição religiosa amazônica, In: O uso ritual das plantas de poder; B. C. LABATE, Dimensões legais, éticas e políticas da expansão do consumo da ayahuasca, In: O uso ritual das plantas de poder.

[8] Cf. J. J. QUEIROZ, As religiões e o sagrado nas encruzilhadas da pós-modernidade.

[9] Cf. S. HALL, Identidades culturais na pós-modernidade.

[10] Ibid., p. 13.