Bombeiros e Polícia no Japão depois de 1945

Carlos Eduardo Riberi Lobo

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir a trajetória da Polícia e dos Bombeiros no Japão no pós 1945, quando ocorreu uma americanização dessas instituições transformando seu modo de atuação e organização, como a relação com instituições similares na no Brasil e na América do Sul.

 

Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial e com a ocupação americana entre 1945 e 1952, as forças de segurança pública no Japão foram reorganizadas, em especial o aparato policial e de defesa civil. A influência americana na reorganização desses serviços foi considerável, passando o país a contar com instituições inspiradas nos moldes americanos. O sistema que existia até então, tanto para a polícia como para os bombeiros, oriundo da restauração Meiji em 1868, era fruto de modelos mais centralizados, de inspiração européia, baseado em modelos da França e Prússia, como do processo de modernização japonês inserido no contexto da Segunda Revolução Industrial nesse período.

Para as forças americanas de ocupação no pós 1945, era necessário “recriar” o modelo de organização policial e de defesa civil para um padrão mais próximo àquele encontrado nos EUA naquele período, baseado no policiamento e na organização dos bombeiros vinculados ao poder local. Buscava-se assim, descentralizar o poder das forças de segurança japonesas, associadas ao período expansionista e militarista do Japão, entre 1870 e 1945.

 

Da restauração Meiji até a ocupação americana no pós 1945.

Quando da Restauração Meiji em 1868, além da centralização política e do processo acelerado de industrialização, era necessário ao Estado japonês dispor de forças de segurança eficientes, para garantir o seu poder e o exercício do monopólio do uso da força. Para tanto, ocorreu a centralização das atividades de segurança pública e defesa civil em um único órgão. A polícia estava subordinada ao Home Ministry , equivalente ao Ministério do Interior. Esse sistema policial centralizado tinha várias funções tais como: saúde pública, construção, serviço de bombeiros, controle de publicações, eleições, etc. Era a base do controle interno da sociedade japonesa. Também foi criado o departamento de polícia metropolitano de Tóquio em 1874, como instituição a parte dentro do sistema de segurança pública do Japão.

O sistema de bombeiros também foi transformado após 1868, com a organização em companhias de bombeiros, denominadas shobogumi. Em 1881 essas companhias passaram para o controle da Polícia Metropolitana de Tóquio, acentuando a centralização e a verticalização dessas instituições. Esse fato mostrou-se recorrente naquele período, da transição para a Segunda Revolução Industrial e da consolidação do Estado Nacional em sociedades em processo de urbanização e industrialização, como o Japão a Alemanha e a Itália, com estruturas de segurança pública centralizadas, nacionais ou regionais e não locais, incorporando serviços de bombeiros em atividades policiais. Tal estrutura permaneceu no Japão até a o fim da 2ª Guerra mundial.

 

Pós 1948 até a estrutura atual

Bombeiros :

Com a ocupação americana e a promulgação da “Law of fire defense organization” [Shobo Soshiki Ho], em 1948 já sob a ocupação americana, os bombeiros foram separados da força policial. A partir de então foram estabelecidos departamentos de bombeiros independentes em cidades e vilas, como instituições vinculadas ao poder local. Por esse novo modelo de organização, baseado na estrutura americana de defesa civil, cabia as prefeituras a organização e manutenção desses serviços com a criação de corpos de bombeiros locais. As metrópoles e cidades maiores ficaram contando com corpos de bombeiros profissionais, as cidades menores e as vilas estabeleceram bombeiros voluntários.

Ao mesmo tempo com o processo de urbanização no pós-guerra, e a verticalização das áreas urbanas japonesas, desenvolvimento da indústria química, indústria eletrônica, auto-estradas, trens-bala, aeroportos, portos, etc, o risco de incêndios e catástrofes tornava-se cada vez mais presente. Tornava-se necessário o desenvolvimento de instituições locais de bombeiros e a consolidação de uma indústria de defesa civil adaptada as peculiaridades do Japão; como a ocorrência de terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, tempestades de neve, etc. Indústria essa que deveria atender tanto os bombeiros metropolitanos de Tóquio e das outras metrópoles como os bombeiros voluntários das pequenas cidades japonesas. O desenvolvimento industrial do país no pós 1945 e a consolidação da indústria automobilística japonesa no mercado internacional possibilitaram o desenvolvimento quase autônomo desse segmento.

O sistema de bombeiros no Japão ficou organizado como um sistema horizontal de instituições, com base no poder local, coordenado em nível nacional pela Fire Defence Agency, vinculada ao Ministry of Home Affairs . Essa Agência determina as normas e procedimentos a serem seguidos pelos bombeiros em todo o país, assim como as academias de formação dos bombeiros devem ministrar seus cursos. Desde meados da década de 1980, o Japão dispunha de aproximadamente 120.000 bombeiros profissionais; 1.069.000 bombeiros voluntários; 23.000 caminhões de incêndio. Existem também departamentos de bombeiros e postos de bombeiros em 79% das cidades japonesas.

Polícias:

Logo após o início da ocupação aliada, 1945-52, estudos para a reforma do sistema policial japonês foram encomendados junto a membros do Departamento de Polícia da cidade de Nova York e da Polícia estadual de Michigan. Foi então estabelecida pela Dieta - o parlamento japonês, uma nova Police Law [Keisatsu Ho] em dezembro de 1947. Como conseqüência o Home Ministry foi abolido e a polícia perdeu suas funções de combate a incêndios, controle da saúde pública e outras funções administrativas. O sistema policial foi descentralizado, e foram estabelecidos departamentos de polícia em cidades e vilas, resultando na criação de 1600 polícias municipais independentes. Foram estabelecidos também novos mecanismos de controle com a atuação dos prefeitos e da sociedade. Todavia o sistema apresentou problemas nas primeiras décadas de existência, pela incapacidade financeira de alguns municípios em manter a polícia e as acusações freqüentes de ingerência do poder local e grupos de interesse nas polícias municipais.

Entretanto com o início da Guerra da Coréia em 1950, as forças de ocupação americanas foram deslocadas para atuação nesse conflito, o que resultou na criação da National Police Reserve ou Keisatsu Yobitai, para suprir a falta de efetivos das forças americanas de ocupação. Posteriormente a Polícia de Reserva, treinada e equipada pelos EUA deu origem as Forças de Autodefesa do Japão, Jieitai , atuais forças armadas japonesas. Em 1951 cerca de 80% das pequenas comunidades passaram o poder de polícia para a Polícia Nacional Rural. Foi então criado um sistema misto, mais centralizado, composto por um sistema nacional e local ao mesmo tempo pela Dieta em 1954, apesar de protestos dos partidos de oposição sobre um possível retorno a um sistema baseado no modelo autoritário pré 1945.

Atualmente o sistema policial japonês é baseado em polícias locais, ligadas as prefeituras, que no dia a dia tem autonomia operacional e administrativa. Porém essas polícias são supervisionadas pela National Police Agency , que supervisiona a formação e treinamento de policiais, fornecimento de equipamentos, estatísticas criminais, etc. O sistema policial japonês é subordinado ao Primeiro Ministro, e o governo nacional auxilia também as polícias locais com verbas, salários e armamentos. Dessa maneira a Agência de Polícia Nacional mantém um sistema de controle vertical sobre as polícias locais. O sistema de policiamento no Japão é baseado no policiamento comunitário e na presença da polícia próxima a comunidade, baseada em pequenos postos policiais, denominados Kobans . É um sistema mais preventivo do que reativo . É provavelmente o modelo mais estruturado e antigo de policiamento comunitário com sucesso no mundo, iniciado no pós Segunda Guerra Mundial, servindo de modelo para várias polícias do mundo.

O Caso de Tóquio: Corpo de Bombeiros e Polícia

Sendo a capital do Japão e uma megalópole, Tóquio possui um departamento de polícia e um corpo de bombeiros altamente qualificados e preparados. Realizar missões de defesa civil, combates a incêndios, policiamento e segurança pública em uma região metropolitana de aproximadamente 25 milhões de habitantes - capital e centro financeiro do país, requer organização e eficiência, fatores determinantes na sociedade japonesa. Deve-se levar em conta ainda a localização geográfica do Japão e a ocorrência freqüente de terremotos, erupções vulcânicas e maremotos.

O Corpo de Bombeiros de Tóquio, TFD [Tokyo Fire Department] fundado em 1882, é um dos maiores do mundo em termos de equipamentos, efetivos e atuação diária. Para tanto possui aproximadamente 17.500 membros, 80 postos principais de bombeiros, 206 postos de bombeiros de menor dimensão, 1839 veículos especializados - sendo 486 auto-bombas, 31 caminhões de resgate, 204 ambulâncias, 48 auto-tanques, 20 motocicletas especializadas, 5 robôs de combate a incêndios, 6 helicópteros, 9 barcos de combates a incêndios, 85 plataformas aéreas e mais 15 caminhões especializados.

A polícia de Tóquio - MPD [Tokyo Metropolitan Police Department] ou Keishicho, foi fundada em 1874, atua em uma das maiores metrópoles do mundo com aproximadamente 12 milhões de habitantes, dispondo de um efetivo de cerca de 41 mil policiais. É comandada por um superintendente geral, apontado em comum acordo pelo Primeiro Ministro e por 5 membros da Tokyo Metropolitan Public Safety Commission. Atua em uma área de 2.183,4 Km2 da área da Prefeitura de Tóquio, que são divididos em 80 distritos policiais, contando ainda com 99 estações de polícia, equivalentes a distritos policiais, e 1250 Kobans , ou postos policiais. Existem também serviços especializados, como a polícia de choque, canil e serviço aéreo, contando com - 1103 veículos, 951 motocicletas, 26 barcos de policiamento e 14 helicópteros.

As Forças de Autodefesa e a Guarda Costeira atuando na Defesa Civil e no Policiamento Marítimo

As Forças de Autodefesa do Japão, em especial a Marinha e a Força Aérea atuam também em missões de defesa civil, principalmente no resgate de acidentes marítimos e em missões de busca e salvamento no mar. A Guarda Costeira do Japão também atua constantemente em missões de salvamento e policiamento em águas costeiras e em alto mar, sua importância é fundamental como força auxiliar já que o Japão possui apenas fronteiras marítimas. A Guarda Costeira ainda possui a frota mais moderna de navios bombeiros do mundo, pois o Japão importa 100% do seu petróleo por via marítima.

 

As Relações com a América do Sul

As polícias e os bombeiros do Japão mantém acordos de cooperação e treinamento e intercâmbio com países da América do Sul, em especial o Brasil, desde meados da década de 1970. Cabe destaque para a Polícia Militar do Estado de São Paulo, juntamente com o Corpo de Bombeiros dessa mesma instituição, e o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal. Mais recentemente na década de 1990, a indústria japonesa de produtos de Defesa Civil conquistou um nicho de mercado no Peru durante o período Fujimori, fornecendo equipamentos para os bombeiros daquele país.

O Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal - CBMDF, tem recebido apoio financeiro e técnico dos bombeiros japoneses desde 1978, para a construção da Academia de Bombeiro Militar através da JICA, a Agência de Cooperação Internacional do Japão. O CBMDF recebeu desde então várias missões japonesas para esse fim nos anos de 1980, 1981, 1984 e 1985. Como conseqüência, as torres de treinamento da Academia de Bombeiro Militar foram denominadas Yokohama e Tóquio em referência ao apoio dos bombeiros daquelas cidades aos bombeiros do Distrito Federal. No ano de 1988 teve início a realização de cursos na área de salvamento e incêndio sob a supervisão de técnicos japoneses oferecidos a bombeiros de países da América do Sul.

No caso brasileiro, a implementação do modelo de policiamento comunitário pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, foi inspirado em parte no modelo japonês. Baseado na proximidade do policial com o cidadão e a instalação de postos fixos de policiamento, equivalentes aos Kobans japoneses. Alguns oficiais do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo também realizaram cursos junto aos bombeiros japoneses desde a década de 1990.

Nos últimos anos, o currículo do curso de oficiais da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, como nos cursos de formação de soldados, o policiamento comunitário é matéria obrigatória nos cursos de formação policial. Mesmo em São Paulo , desde meados da segunda metade da década de 1990, é possível encontrar mais policiais nas ruas realizando patrulhamento a pé, com bicicletas, baseados em trailers ou em postos fixos, semelhantes aos Kobans japoneses. O Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo também utiliza motos em missões de resgate, salvamento semelhante ao modelo dos bombeiros de Tóquio.

Entretanto nos exemplos citados no Brasil a presença japonesa é mais presente na implementação de técnicas e procedimentos e financiamentos do que na vinda de equipamentos. Desse modo ainda prevalece uma maior influência americana e européia em termos de doutrina e equipamentos do que a aplicação de um “modelo japonês” de defesa civil e segurança pública.

 

 

Mestre em História Social , Doutorando em Ciências Sociais-Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Membro do GEAP e do NERIPUC nessa mesma Universidade. Professor de História das Relações Internacionais no Centro Universitário Assunção - UNIFAI. O autor está trabalhando no doutorado a história do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo desde a década de 1960 até os dias atuais

Sobre o sistema policial no Japão e a sua história ver: Noma Sawako, [org]. Japan. An illustrated Encyclopedia. Tokyo: Bunkyo-ku Kodansha Ltd, 1993, encontrados no verbete “police system” ou “keisatsu seido” pp. 1210-1211 onde é abordada também a organização desses serviços. O verbete sobre “fire defense system” ou “shobo” tratando a respeito da história dos bombeiros desde o período feudal no Japão está na pp. 375-376. Sobre a polícia nessa mesma obra o verbete “police system” ou “keisatsu seido”, fala da História da polícia no Japão desde 1600, no período Edo, e está na pp. 1210-1211. Sobre a Polícia Metropolitana de Tóquio, o verbete “tokio metropolitan police department” ou “keishicho” e sua história desde 1874 está na p. 1598. Dados mais detalhados sobre a polícia e bombeiros no Japão também podem ser encontrados em: Kodansha Encyclopedia of Japan . Tokyo/New York: Kodansha Ltd, 1983, encontrados no verbete “fire defense system” no volume 2, pp. 279-280 e “police system” no volume 6, pp. 198-201.

A título de exemplo, os Bombeiros e a Polícia de Tóquio importam poucos equipamentos, cabendo destaque para os helicópteros utilizados por essas instituições em missões de policiamento e resgate, tradicionalmente de origem européia ou americana. Sempre que possível essas aeronaves são produzidas localmente sob licença pela bem desenvolvida indústria aeronáutica japonesa.

Kodansha Encyclopedia of Japan , op. cit, p. 279-280.

Kodansha Encyclopedia of Japan , op. cit, p. 198.

Idem op. cit

Sobre policiamento comunitário e a sua história em diversos países e a influência do modelo japonês em outros países ver: Jerome H. Skolnick & David Bayley. Policiamento Comunitário . São Paulo: EDUSP/Ford Foundation/ NEV-Núcleo de Estudos da Violência -USP, 2006, em especial pp.52-53

Sobre a população de Tóquio com dados de 2001 ver: The Economist. Pocket World in Figures 2005 . London: Profile books, 2004., p. 22.

Sobre o Corpo de Bombeiros de Tóquio ver o site oficial da instituição: < http://www.tfd.metro.tokyo.jp/eng/> e < http://www.tfd.metro.tokyo.jp/eng/res.htm > [acesso em 25/08/01]

Ver o verbete “Tokyo Metropolitan Police Department” ou “Keishicho” em: Japan a Illustrated Encyclopedia , op. cit, p. 1598, e também o site oficial da instituição nos títulos: “Metropolitan Police Department” e “MPD Work Force” em: < http://www.keishicho.metro.tokyo.jp/foreign/gaiyo2/image1/MPD1.pdf > [acesso em 15/11/2006]

Sobre as Forças de Autodefesa do Japão e as missões possíveis de Defesa Civil ver: David Willis [editor, et. ali]. Aerospace Encyclopedia of World Airforces . London/Westport: Aerospace Publishing/AIRtime Publishing, 1999 e Keith Faulkner. Jane's Warship Recognation Guide . Glasgow: Harper Collins Publishers, 1996. A atuação da Guarda Costeira do Japão pode ser encontrada em: Robert L. Scheina. “Coastguards of the World” in: Jane's 1981-82 Naval Annual . Edited by Captain John Moore RN. London: Jane's, 1981, pp.59-69.

A influência dos bombeiros,como da indústria japonesa de defesa civil no Peru estão no artigo de: Lewis Meija. “Bombeiros Voluntários do Peru” in: Tecnologia e Defesa, ano 21 – nº 102 . São Paulo: Tecnodefesa, 2004, pp. 62-64.

Sobre a cooperação dos bombeiros japoneses com os bombeiros do distrito federal e o histórico dessa colaboração, ver o site oficial do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal: < http://www.cbm.df.go.br/ocbmdf/hitorico/historico.asp > [acesso em 03/09/01]

Em contatos com oficias da Polícia Militar do Estado de São Paulo e do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, o autor obteve esses dados sobre as relações com os bombeiros e polícias do Japão.