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A preocupação bio-ética no tempo do niilismo
Constantino Esposito
 

1. Um grande poeta italiano do século XIX, talvez um dos maiores de toda a cultura moderna, Giacomo Leopardi, escreveu em 1823, numa carta enviada a um seu correspondente francês, uma frase que, na brevidade de sua intuição - quase um lampejo agudo de consciência profundamente humana - pode nos ajudar mais, e antes de qualquer programa de análise, a entender o centro da nossa questão. “Se a felicidade não existe”, escrevia Leopardi, “o que é então a vida?”.

Interrogar-se sobre “vida” é possível, paradoxalmente, somente no reconhecimento de algo que é maior que a própria vida: o seu sentido. Esse é o ponto existencialmente mais interessante de toda a questão, e também aquilo que na experiência emerge com maior urgência. A vida não se explica a si mesma, no sentido simplíssimo de que ela não é nunca “problema” por si mesma (notadamente, de fato, os “problemas” são todos, “naturalmente”, resolvidos, sempre, pela própria vida, com aquela necessária solução que chamamos “morte”). O seu “por que” já está resolvido desde sempre no “como”: ela fornece certamente as suas explicações, mas em cada uma delas fica como que um vestígio de uma pergunta que nunca recebe resposta (tanto que, segundo alguns, ela será simplesmente removida como um resíduo do tipo “metafísico” ou, pior ainda, “religioso”).

Só que, olhando bem - e é justamente a esse “olhar” que eu gostaria de convidá-los hoje -, o surgimento dessa pergunta (por que isto?, que significado tem?, qual é o sentido disto tudo? e por que eu existo?) com o passar do tempo não pode ser evitado, sob pena de que o próprio fenômeno do qual ela nasce - os fatos e acontecimentos da vida, propriamente - percam literalmente a consistência. Assim, poderemos dizer que a pergunta sobre (e do) significado é como um “ponto de fuga”, cujo papel paradoxalmente não é o de nos fazer escapar ou evadir-nos da vida (essa não seria uma resposta, mas um esquecimento), mas justamente o de nos fazer estar com mais consciência na própria vida.

Pois bem, essa pergunta irredutível, que qualquer um de nós pode facilmente surpreender na própria experiência, é aquela que com Leopardi podemos chamar, em síntese, pergunta da felicidade. Mas uma tal pergunta - ou exigência -, por sua vez, ficaria inexplicável, ou, mais simplesmente, não seria nem mesmo colocada, se não fosse colocada, por assim dizer “em primeira pessoa”, por “alguém” que pergunta. Tentem imaginar algo como um problema da “felicidade em geral” ou, pior ainda, da “felicidade geral” (como por exemplo tinham tentado os Iluministas franceses do século XVIII, teorizando e de fato programando uma félicité publique), e vocês se encontrarão diante da mais insuportável das abstrações, senão a mais violenta das ideologias. A “felicidade”, ou melhor, o questionamento de ser felizes (Leopardi dizia: se a felicidade existe ou não existe) pode surgir com verdade somente como pergunta “minha”, vale dizer, como a interrogação de um “eu”.

Se, no entanto, bioética é a preocupação sobre a vida, ela não pode ser adequadamente encarada senão a partir da preocupação da própria vida, e, quer dizer, daquela experiência que chamamos “consciência”. E se é verdade que a consciência parece emergir como momento, por assim dizer, “final” no dinamismo evolutivo da natureza vivente, a própria “natureza” da consciência dificilmente se deixa explicar como um simples “produto” desse dinamismo: não que isso seja estranho, certamente, tanto é verdade que a consciência nasce na vida e da vida; será preciso sobretudo perguntar-se se as determinações (e os limites) do ser vivente coincidem com as determinações (e os limites) da experiência consciente ou se esta última, ao contrário, não ultrapassa aqueles limites justamente por meio da sua pergunta. (Reparem bem: por meio da sua pergunta, não por meio de uma sua potência espiritual, como seria o caso do “eu” do qual fala a filosofia idealista, não somente esta, mas, no fundo, todas aquelas posições filosóficas, também as anti-idealistas, para as quais o “eu” não é uma potência absoluta, mas uma absoluta in-potência: em ambos os casos, de fato, o homem não é somente aquele que possui a pergunta do sentido, mas também aquele que a possui e dela determina a resposta, positiva ou negativa que seja.)

Enfim, o problema exposto é o de não reduzir apressadamente - ou pior, intencionalmente ou ideologicamente, como em boa parte do “mentalismo” contemporâneo - o eu à vida, e vida por si mesma: é aquilo que no entanto acontece facilmente numa cultura do tipo “positivista” ou “psicologista”, a qual no máximo permite (como no triunfo sempre acrítico da bioética contemporânea) reportar a vida a um “eu” entendido como o sujeito emotivo de decisões racionais, no qual a racionalidade seja conjugada de maneira intrínseca, e em muitos casos reduzida a “sentimentalidade”. Que é exatamente o outro lado do positivismo, pelo qual seria “real” somente aquilo que é mensurável segundo certos parâmetros científicos (os quais, no entanto, como sabemos, mesmo no sentido epistemológico são sempre relativos). Também o sujeito do tipo “ético”, definido como portador de princípios e de valores morais, corre o risco de, de fato, perder a capacidade, mais exatamente da sua consciência - que é aquela da pergunta de um significado último e total (a “felicidade” leopardiana), e por isso de uma pergunta estruturalmente “aberta” - traduzindo-a num “sentimento” do tipo emotivo, que não é menos “mecânico” somente pelo fato de ser mais emotivamente percebido pelo eu, já que também ele pode facilmente fechar-se na sua própria capacidade de “reações”.

A evidência que emerge da própria experiência do “eu” - e por isso da experiência propriamente “minha” - nos leva, portanto, a reconhecer que esse “eu” não é somente consciente enquanto vivente, mas que, mais que isso, é (plenamente) vivente enquanto consciente. É daqui que começa a delinear-se, ao mesmo tempo, uma perspectiva de confronto com o tempo no qual nós, de fato, vivemos historicamente e que poderíamos chamar de época do “niilismo”. Não será talvez inútil ir um pouco mais a fundo (de maneira necessariamente sumária) neste fenômeno típico do nosso tempo, para encontrar nele os pressupostos do declínio do “eu” (quer dizer, é bom repeti-lo, da inexorável pergunta do significado, e então da espera de uma relação com a infinita resposta) que está na origem de uma disciplina como a bioética contemporânea. Se é mesmo verdade que esta última está em busca de uma responsabilidade moral no confronto com a natureza, dos limites e das possibilidades do vivente, isso significa que o homem há muito tempo deixou de ser relação com o significado maior do que si mesmo e do que o mundo e se auto-constituiu Senhor da vida. Senhoria esta que arrisca a cada dia curvar-se a um projeto de poder, o ser das coisas.

Ao mesmo tempo, justamente um aprofundamento do niilismo - esta é a minha hipótese - poderia ajudar-nos a especificar as ambigüidades, para não dizer as aporias estruturais ao encontro das quais iria a própria bioética, na sua vulgata do novo nome da filosofia moral do nosso tempo.

2. O niilismo é muito mais do que uma corrente ou uma posição entre outras, dentro do nosso panorama cultural: ele foi pensado e sempre mais se apresenta como a oculta força de gravidade da nossa época, uma tendência fundamental que faz “curvar”, segundo um certo acento - teorizado ou mesmo apenas tolerado -, a concepção que os homens têm de si mesmos e do mundo. Hegel diria: aqui está o Zeitgeist, o espírito do (nosso) tempo.

A trajetória histórica do niilismo (como fenômeno e como conceito) é marcada por uma ambigüidade estrutural: ele se apresentou cronologicamente, e se apresenta contemporaneamente, como “crise” e como “solução”; como “revolução” e como “nova ordem”; como o grito ardente de um sentido radical para a vida e como tácito conformismo sócio-cultural. Trata-se - como veremos - de uma ambigüidade dramática, talvez trágica.

No início o niilismo nasce, precisamente, como um fenômeno patológico: pensemos na situação cultural e sócio-política marcada pelos movimentos das vanguardas “niilistas” na Rússia e em parte na Alemanha, entre 1830 e 1840, assinalados pela recusa da tradição (e da tradição cristã em particular) e pelo “ideal” de um novo tipo de herói, o qual, colocando-se justamente contra a cultura dos “pais” (e por isso não concebendo-se mais como “filho” de alguém) procura a verdade de si numa auto-afirmação titânica, segundo um ideal todo “cientificamente” planificado. Mas pensemos ainda, mais amplamente, na crise do Império de Habsburgo, no populismo russo, no terrorismo difundido na Europa até a maré revolta da primeira Guerra Mundial: a Belle Époque, a bela época da Europa imperial cede lugar a uma espécie de desilusão de época, uma espécie de doença do desencanto, que leva a contestar, e no final a aniquilar a própria idéia de “progresso”.

Esse aniquilamento se apresenta, filosoficamente, sob a forma de uma revolta contra o idealismo, o historicismo e o positivismo. Tanto no gesto anárquico quanto no desespero ético, tanto no heroísmo quanto na impotência, o niilismo repropõe - mais ou menos conscientemente, mais ou menos confusamente - o problema da verdade como problema de uma possível ou impossível salvação do “eu”, e, portanto, em última instância, como o problema dramaticamente percebido da liberdade humana.

Mas com o tempo, durante todo o século XX, e em particular da segunda Guerra Mundial até os nossos dias, o niilismo, deixando de ser a expressão de um desconforto patológico, transformou-se sempre mais numa condição fisiológica: é como se a luta fosse lentamente transformada numa espécie de não-beligerância, numa “paz” não conquistada mas, por assim dizer, “imposta”, sendo de qualquer modo afirmada a idéia de que a verdade (e portanto a “salvação”) se dilua lentamente numa continua “interpretação”, e que a liberdade possa e deva afirmar-se prescindindo da verdade.

Em 1880, Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamazov, faz o protagonista Ivan, perfeita encarnação do “niilista”, dizer: “Se Deus não existe, tudo é lícito”. Em 1951, Albert Camus, uma das vozes que mais nos permitiram ir a fundo na questão, no seu L'homme révolté (O homem revoltado), assim comentava a sentença de Ivan Karamazov: “Com esse 'tudo é lícito' tem realmente início a história do niilismo contemporâneo”.

Hoje essa perspectiva pareceria estar totalmente em crise, de tanto que são evidentes as conseqüências às quais ela levou, em termos de destruição do humano - no nível da consciência não menos que no nível da violência ideológica e material. Seríamos tentados a “balancear” esse desvio niilista com um retorno à responsabilidade ética (que é o caminho mais batido na cultura atual, não só no âmbito do liberalismo de origem kantiana, mas também no do pós-comunismo, acompanhado por não poucos expoentes da teologia cristã). Mas deveríamos, talvez, tentar uma versão mais corajosa das coisas e uma saída menos reduzida, assumindo como ponto de verificação da questão não tanto um ponto de vista ético, quanto um ponto de vista “gnoseológico” ou “cognoscitivo”. De que realmente se trata o niilismo? Fomos até o fundo da sua pretensão e também do seu fracasso? Em que nos interpela?

Ora, permito-me considerar a hipótese de que o “tudo é lícito” ou o “tudo é possível” de que fala o niilismo, bem antes de ser uma expressão de irresponsabilidade ética, constitua uma redução do próprio “princípio de realidade”: paradoxalmente, se “tudo é lícito” nada é verdadeiramente real! E então o niilismo não teria fracassado, levando às terríveis conseqüências que sabemos, por ter pensado o “tudo” como lícito, mas por não haver pensado até o fundo nesse “tudo”, por ter, em outros termos, imaginado essa totalidade com base nas próprias medidas, e não como “outro” ou “infinito”, qualitativamente diferente de mim e portanto em relação comigo.

É muito significativo, a propósito, recordar o nexo estreitíssimo que liga, em Nietzsche, o viajante insensato que vai à procura de Deus em meio ao povo indiferente na praça do mercado, e que no final grita: “Deus está morto e vocês o mataram” (cf. A Gaia Ciência, 1881/82, § 125), com aquele que o próprio Nietzsche chama “o pensador do futuro”, vale dizer, o pensamento do super-homem, sobre cuja porta estaria escrito: “Que me importa!” (in: Aurora, 1881). E lhe faz eco Zaratustra, a quem Nietzsche faz dizer: “Qual é a máxima experiência que podeis viver? A hora do grande desprezo. A hora em que vos tome o nojo também pela vossa felicidade e, assim, portanto pela vossa razão e pela vossa virtude” (Assim falou Zaratustra, 1883/85, Prefácio). E isso, diz Nietzsche, para poder esticar o arco do desejo além de si mesmo e poder “superar” o homem.

À medida que o niilismo se afirma, emerge como seu fio condutor a perda de consciência do eu, justamente porque o relacionamento com a totalidade ou com o infinito que caracteriza o eu não tem mais um lugar ou um peso real. Se ao eu “tudo” é lícito, ou melhor, “o todo” é lícito (no sentido de que é ele quem decide o que pode ser esse tudo), isto é, o que ele tendentemente perde é justamente o seu relacionamento com o real, e portanto consigo mesmo: uma vez “desprezado” naquilo que é, o eu tenderá a ser concebido como igual a “nada” (mesmo enfatizando a grandeza que o eu deveria ter, ou que é chamado a realizar no futuro, mas que hoje, agora, não existe). O super-homem - e a idéia de que eu possa ser “construído” de um modo melhor do que aquele que “é” - vem a significar, assim, o nada do homem que sou.

É certo que o super-homem não tardará a demonstrar a ilusão e a violência do seu “resultado”. Todavia, mesmo indo além das conseqüências da filosofia de Nietzsche, ou melhor, passando justamente pelas trágicas vicissitudes das ideologias do século XX, essa concepção, no fundo, depositou na nossa cultura - de forma e em linguagens certamente diferenciadas - dois elementos constantes: 1) a consideração do valor do eu (= do homem que sou, assim como sou) em termos de uma negatividade, de uma absoluta e insuperável finitude ou fechamento para qualquer relacionamento com algo além de si mesmo; e 2) a tentativa de projetar, em sentido voluntarista, um homem novo ou diferente, fixando-lhe sempre funções e limites. À fraqueza extrema da consciência do eu (e, portanto, da razão) se agrega, assim, a violência da vontade (tanto violência material quanto espiritual, utópica ou doméstica).

Ora, o que mantém juntos esses dois fatores é a insistência no fato de que a única “versão” possível da verdade está não na evidência do real, mas na estratégia da interpretação. Voltemos a dar a palavra a Nietzsche, que, num fragmento póstumo remanescente dos anos 1885/87, escrevia: “Contra o positivismo, que se detém apenas nos fenômenos [e diz]: ‘Só existem fatos’ -, eu diria: não, justamente os fatos não existem, apenas as interpretações. Nós não podemos constatar nenhum fato ‘em si’; talvez seja um absurdo querer algo do gênero. ‘Tudo é subjetivo’, vocês dizem; mas essa já é uma interpretação. O ‘sujeito’ não é nada de dado, é apenas algo acrescentado pela imaginação, algo fixado posteriormente. É ainda necessário, enfim, colocar o intérprete atrás da interpretação? Isso já é invenção, hipótese” (ed. Colli-Montinari, Adelphi, vol. VIII/1, p. 299).

Quase um século depois, Michel Foucault ecoará as suas palavras: “Se a interpretação jamais pode se completar, é simplesmente pelo fato de que não existe nada para interpretar. Não existe nada de absolutamente prioritário para ser interpretado, pois, no fundo, tudo já é interpretação, todo sinal já é em si mesmo não o objeto que se oferece à interpretação, mas a interpretação, ela mesma” (in: Nietzsche, Freud, Marx).

Esse trecho de Foucault pode nos servir não apenas como indicador de uma problemática típica da filosofia francesa (entre as duas margens de uma epistemologia estruturalista e de uma filosofia pós-nietzchiana e pós-heideggeriana da différence), mas muito mais como indicador de uma tendência transversal e difusa - bem além da corrente “hermenêutica”, contraposta à “analítica” - que privilegia decididamente um conceito de interpretação que reabsorve em si, tanto o dado real que é interpretado quanto o próprio sujeito que interpreta. Nessa estrutura literalmente “neutra” de interpretação, quem conduz o jogo é verdadeiramente o poder cultural dominante, ou (mas é o mesmo) um dispositivo mecânico de opções emotivas ou irracionais. E assim, a própria ars interpretandi, que nascera com a pretensão de emancipar a subjetividade, corre o risco de submetê-la em realidade ao predomínio de um “pensamento público”.

É como já havia notado de maneira lucidíssima, em 1949, um crítico atento do nosso tempo como Ernst Jünger, numa célebre discussão com Martin Heidegger sobre niilismo. Segundo Jünger (cf. Über die Linie, “Acima da Linha”) o niilismo não deve mais ser entendido como caos, mas, ao contrário, como o que mais se harmoniza com os “sistemas de ordem”; ele não é mais considerado como doença, mas como uma nova saúde física para o indivíduo, e um “substituto da religião” para os povos; enfim, ele não se conota mais como mal, mas liga-se principalmente a uma espécie de “automatismo moral”, à “confusão do bem e do mal”. Usando uma fórmula tão eficaz quanto dramática, este é o tempo em que, nas palavras de Jünger, “ continua-se a consagrar ainda que não se creia mais na eucaristia. Então, para torná-la mais compreensível, a interpretamos de uma outra forma”.

O que fazer diante dessa situação? A resposta de Jünger é interessante como indicativo de uma outra tendência bem reconhecível da nossa época, ou seja, uma certa perspectiva espiritualista de tipo gnóstico. Quando o pensamento está na fronteira com o nada (justamente porque a realidade perde progressivamente a sua densidade ontológica e a sua evidência de verdade), ele deve retornar ao “oásis” no qual, da dor e do perigo, pode renascer a esperança, procurando, dentro do “próprio peito”, transformar a falta num novo advento do ser.

Mas será o homem capaz disso? De onde tirará a força que habita em seu íntimo? À lucidez do diagnóstico não parece corresponder a racionalidade do tratamento. Heidegger será bem mais conseqüencial, quando, em resposta a Jünger, dirá que o niilismo é na realidade insuperável e que a única possibilidade de nos colocarmos autenticamente diante disso é aprofundar o seu enigma oculto. Esse enigma consistiria, para Heidegger, no fato de que é necessário repensar efetivamente o significado do próprio ser e a sua verdade, não mais nos termos da “presença” (pois só estão presentes os entes que podemos objetivar), mas nos termos da “ausência”, da “recusa” e da “subtração”. Em Heidegger, chegamos à trágica radicalização do niilismo filosófico: mesmo para salvaguardar o “ser” como diferente dos entes que podemos nós padronizar, é necessário pensá-lo como aquilo que não se dá e nunca pode se dar, nem pode ser experimentado. A perfeição da existência humana corresponde, assim, à extrema e radical perfeição do próprio ser.

E “perfeição do ser”, aqui, não significa tanto uma tomada de posição com respeito ao mundo físico ou à mortalidade do vivente, quanto a um modo diferente de pensar e de perceber a si mesmos e ao real: aquilo que existe não me vem de ninguém, é como ou dom sem doador, e, em conseqüência, quando eu encontro o dado - aquilo que me foi doado e está na minha frente, a partir daquele dado que sou eu por mim mesmo - isto não revela nada mais que as suas determinações mensuráveis (o mundo da técnica): em outros termos, não é sinal de nada. Aqui está, assim me parece, a negação mais radical e mais dramática da nossa tradição - aquela concepção grega e sobretudo aquela história hebraico-cristã que nos levou por séculos a experimentar o maravilhamento, a surpresa por aquilo que é, como gratidão para com o dom da criação: pelo fato de que o ser é infinito e totalmente outro em relação a mim, e todavia eu o recebo como “meu”, participo dele, e existindo sou objetivamente “sinal” dele.

Essa concepção ontológica, que chegou até nós por intermédio de uma tradição histórica viva, é a mesma graças à qual os homens puderam conceber-se não simplesmente como partes indistintas de um todo natural ou acidentes casuais no mar indiferente do ser, mas como “eus” pessoais, isto é, conscientes e livres. Não é por acaso, então, que no ápice do niilismo, justamente quando o eu perde consistência pessoal, muitos procurem evadir-se num renovado “panteísmo” substancialmente anti-cristão, mesmo porque, diante de uma realidade que não é mais sinal de nada, diante de um homem que não se concebe mais como filho de ninguém, parece não restar alternativa que sublime o cansaço de viver numa evasão da realidade, num “outro mundo” do tipo virtual, com conotações espiritualistas e cada vez mais desmaterializadas, abstratas (vejam o fenômeno da New Age: a religião como verdadeiro “ópio” do povo).

Assim, o niilismo, justamente no seu caráter de anti-realismo, de um lado revela a sua verdadeira origem, que é uma presunção antropocêntrica, a presunção de um homem que crê poder salvar-se por si mesmo, afirmando uma medida sua como o destino do ser; mas, por outro lado, mostra que esse antropocentrismo não é absolutamente a exaltação, e, sim, a perda do eu. E digo perda do eu no sentido de que ele, nisto que lhe é mais próprio - vale dizer, a sua irreplicável consciência pessoal e a sua liberdade individual - arrisca ser progressivamente reabsorvido em duas extremidades aparentemente opostas, mas na realidade complementares: o “instinto”, de um lado, e a lei, de outro.

Se um homem é concebido e se concebe exclusivamente como resultado dos seus antecedentes biológicos e das suas progressivas adaptações ao ambiente que o circunda, sua estatura será dada pelo bom funcionamento dos seus mecanismos naturais, e estes últimos terão como único controle aquilo que de vez em quando uma cultura, um grupo social ou um Estado julgarão e ordenarão como “legítimo”. Até decidir se e quando vale a pena existir (começar a existir e terminar de existir). Se de fato o sentido do ser não é reconhecido como um mistério infinito - e, portanto, absolutamente real e histórico -, então isso não pode ser mais que um decreto judicial, que de vez em quando decidirá o ponto de passagem do não-ser ao ser e do ser ao não-ser. (...)

Minha conclusão é de que a preocupação bioética não é tanto uma resposta e uma alternativa à crise própria do niilismo, mas corre o risco de ser uma das suas mais completas expressões.

Uma ética implica em responsabilidade, em capacidade de resposta. E isso é possível somente se o vivente é um eu que faz uma experiência consciente de si mesmo e do mundo. Mas só um conhecimento do sentido (a verdade) pode fazer com que nós não nos façamos nunca donos dessa resposta, mas, ao contrário, possamos acolhê-la e servi-la.

E então o verdadeiro risco em jogo não pode ser o da licitude ou ilicitude de certos procedimentos considerados limites pré-determinados da vida, mas o de tornar novamente possível descobrir a experiência mais preciosa, e também mais útil para o seu próprio bem-estar, que a um homem possa acontecer: a consciência de que qualquer um, porque existe, e assim como é, é um fator indispensável ao mundo. Que a sua não-repetibilidade, a sua unicidade não é um simples “acaso” da espécie, ou uma imagem passageira destinada a desaparecer, mas uma realidade de absoluto significado. O seu destino, de fato, o meu destino é o Infinito.

 
 
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