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Igreja, aborto, eutanásia
Artigo publicado blog de Marcelo Coelho
Marcelo Coelho

Marcelo Coelho, sociólogo, jornalista e escritor, é membro do Conselho Editorial da "Folha de São Paulo" e escreve semanalmente na "Ilustrada".

O leitor perceberá que este não é um artigo escrito por um católico. Sua posição pode ser, algumas vezes, até agressiva e injusta para com a Igreja. Contudo, ao longo do texto, se evidencia um caminho de encontro e compreensão que nasce do reconhecimento de uma experiência humana verdadeira de abertura à vida. Os católicos não podem jamais abdicar de anunciar a verdade que encontraram e a sua incidência na vida prática, individual e social. Mas não deixa de ser valioso reconhecer como uma experiência humana verdadeira pode abrir espaço para um encontro, mesmo onde nossos preconceitos julgam impossível que ele aconteça e, quem sabe, abrir caminho para uma sociedade mais humana.

Fugimos do sofrimento, é claro. Mas será que nessa fuga não existe covardia? Covardia não no sentido moral do termo, mas sim no que o termo significa de recusa à verdade, fuga simplesmente de algo que pode ser útil e pedagógico para nós?
Leio, num volume sobre bioética o trecho em que Reinaldo Azevedo descreve suas sensações durante a morte do pai.
Meu pai padeceu longamente de um câncer, que depois se generalizou em metástases várias... Já não podia mais se comunicar, mas estava vivo... Não sentia mais dor. Não sofria mais. Até seu último suspiro, que eu não olvidaria esforços para retardar, construí e reconstruí teias de afetos e de lembranças, caminhei pelos desvãos da memória, tentei entendê-lo melhor e a mim mesmo. Queria me fazer, e talvez tenha conseguido, a partir dali, um homem melhor. Meu pai estava vivo porque sua vida, mesmo naquelas condições, vivia em mim, na minha irmã, na minha mãe, nos seus netos, na generosa rede familiar que se criou, incluindo sobrinhos, irmãos, cunhados, para protegê-lo e dignificá-lo. Seu corpo ainda morno, embora já não emitisse qualquer sinal de consciência, me acolhia e me amparava, cobrava de mim entendimento”.
É um trecho muito bonito, muito nobre, muito humano. Segue-se o comentário dos dois autores do artigo do livro sobre bioética, Francisco Borba Ribeiro Neto e Dalton Luiz Paula Ramos:
“O pai não é apenas um ser que sofre e causa sofrimento, mas é – antes de tudo — um ser a partir do qual o sujeito compreende melhor a si mesmo e ao mundo. O sofrimento é, paradoxalmente, oportunidade para a compreensão do sentido das relações afetivas. O ‘homem melhor’ para si e para o mundo, nasce da acolhida do outro e do sofrimento que isso acarret”.
Os autores do artigo contrastam esse depoimento com o de uma especialista que defende o aborto de um feto anencéfalo:
“Cada gestante vai encarar a manutenção da gestão de um feto inviável de forma diferente. Apesar da tristeza, algumas se conformam com a situação ... Outras, na verdade a maioria, não têm a intenção de passar mais alguns meses carregando um feto para aguardar, paradoxalmente, a sua morte... Já ouvi de uma gestante sentir-se como um ‘caixão ambulante’. O diagnóstico em si já é muito duro; passar meses vivenciando essa perda pode ser encarado como tortura por muitas mulheres em tal situação”.
Os dois casos são bem diferentes, mas não há como não negar sua semelhança. Do ponto de vista católico, os dois se equiparam no mesmo princípio, que é o do respeito à vida, seja em que condições esta vida se prolongue, e em outro princípio, no caso mais importante, que é o de acolher o sofrimento, em vez de fugir simplesmente dele.
Fugir a todo custo do sofrimento pode implicar, com efeito, atitudes de total desumanidade. “Meu pai está velho e sofre de Alzheimer: torço para que ele morra. Se pudesse apertar um botão, ele já estaria morto.”
Hesito, contudo, em classificar de “desumana” a atitude desse hipotético parricida. Nada mais humano, com efeito, do que desejar a morte do pai... E, na medida em que esse pai está destituído de um mínimo de consciência humana, não é absurdo pensar que ele já esteja morto para todos os efeitos.
Contudo, o que há de verdadeiro na atitude católica está no ato de perguntar: “você está apertando esse botão por comodismo ou por piedade? por egoísmo ou por amor?”
Honestamente, eu diria que estou apertando por egoísmo. Com a ressalva, contudo, de que meu egoísmo não está prejudicando ninguém: o pai transformado em vegetal nada mais sente, não é mais ninguém.
Eis então que retorna o quadro de Reinaldo Azevedo, contemplando o próprio pai inconsciente, vivendo ao lado daquele corpo que foi seu pai a profundidade e as memórias de uma longa relação. Trata-se de alguém que não foge pragmaticamente do próprio sofrimento. Que o acolhe, na esperança de tornar-se de uma pessoa melhor.
Gostaria de ter essa espécie de acolhida cristã diante do sofrimento. Respeito-a muito. Mas não posso considerá-la como uma lei a ser seguida universalmente. Talvez outro filho, igualmente amoroso, não suporte ver a agonia silenciosa e sem dor do próprio pai. Talvez uma mãe infeliz prefira abortar o filho anencéfalo do que viver plenamente a agonia de uma gestação inviável.
Simplesmente não sabemos qual a profundidade, qual a frivolidade, da atitude de uma pessoa diante de situações tão extremas. Não sabemos qual o egoísmo, qual o altruísmo, o que de edipiano, o que de cristão, o que de intenso ou de frívolo existe na atitude de uma pessoa diante de um pai agonizante ou de um feto inviável.
Seria este um assunto a ser regulado por leis e constituições? No fundo, o feto e o moribundo não têm resposta a dar. O filho, e a mãe, envolvidos nessa situação extrema, estão vivendo apenas sua própria vida: suas próprias reações diante do que lhes foi dado enfrentar. Que cada um enfrente isso como possa –concordando com o aborto e a eutanásia, recuando diante dos dois como diante de um crime—é a única saída, a meu ver, do Estado frente a um dilema desse tipo.
O sofrimento, bem entendido, será objeto de acolhimento ou rejeição em qualquer hipótese. Não cabe ao Estado incentivar o sofrimento dos cidadãos. Será que cabe essa missão à Igreja Católica? Acho que não. Pode, e sabe, valorizar o sofrimento como arma nas mãos de Deus para engrandecer o cristão. Não pode provocá-lo inutilmente, e a isso se dedica há séculos. Que seja (e muitas vezes é) força a favor da alegria, não do sofrimento inútil, ao qual se alia.

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