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A repressão do amor e seus efeitos na contemporaneidade
Karin Hellen Kepler Wondracek
 

A experiência do amor, quando vivida em sua verdade e integralidade, é sempre ponte que permite que as pessoas se conheçam, se encontrem e possam construir uma comunhão que supera as barreiras que nossa instintividade ergue entre nós. A seguir apresentamos, com particular alegria, um texto proposto especialmente para o Projeto “Para compreender o amor humano” pela Profa. Dra. Karin Wondracek, psicóloga e professora da Escola Superior de Teologia, do Rio Grande do Sul, o mais importante centro de formação e pesquisa teológica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e um dos mais importantes da América Latina

Quem lê este título, pode pensar em várias direções – afinal, levanta-se muitos diques contra o amor – diques de ódio, diques de indiferença, diques de isolamento do corpo, e assim por diante. Penso que
estes últimos já foram “dinamitados”, ou ao menos já se descobriu como fazê-lo. Há recursos disponíveis na cultura, basta a tão falada conscientização e boa vontade.

No entanto, preocupa-me um tipo de dique repressivo que, a meu ver, está mais oculto e mais sutil.
Mostra-se no estancamento da capacidade de demonstrar amor a amigos/as, namorados/as e cônjuges. Com estancamento de amor quero sinalizar que não me refiro ao bloqueio da sexualidade explícita – não estamos mais, na cultura ocidental, no tempo do estancamento desta – mas justamente sentimos falta
de um amor que não leve diretamente ao corpo, ou, em bom português, à cama.

Onde estão os sinais da repressão deste amor? Mostra-se na ausência de rimas e ritmos nos afetos,
na falta de expressões ternas no abraço, na omissão de suspiros e palavras no ombro. Tudo vai muito diretamente ao erótico explícito, tudo excita diretamente o corpo, mas um corpo que por vezes sente falta
de um outro prazer que o da descarga genital.

Oskar Pfister (1873-1939), em suas cartas a Freud (1), insistia para que este não deveria nomear de sexo ao impulso fundamental, mas de amor. Freud retrucava que seu conceito de sexo compreendia o que
os cristãos chamavam de amor. Com esta associação, Freud se aproximava do círculo hermenêutico
de Pfister, que era, além de psicanalista, pastor. Pfister respondia que com isso Freud dava margem
a mal-entendidos, limitações e críticas desnecessárias. O fundador da psicanálise concordava neste ponto, mas mantinha sua opinião pois acreditava que a origem corporal do impulso básico dava razão a chamá-lo assim. Pfister manteve sua própria concepção, e teorizou que o impulso básico era mais amplo que Freud supunha, e apresenta dois componentes, que, para serem facilmente compreendidos, foram simbolizados por dois animais: toupeira (um animal que cava túneis e galerias, só saindo à noite) e águia
(sua inspiração deve vir das observações nos Alpes suíços). Com o primeiro, Pfister quer simbolizar
o mundo dos impulsos mais imediatos do corpo – fome, sede, procriação, prazer sexual, abrigo do frio
e calor, entre outros. Com a águia quer expressar a necessidade de liberdade, de enlevo, de arte, de transcendência. Para ele, ambos constituem o mesmo impulso básico, ambos fazem parte da natureza humana. Isto é, a águia não é fruto da repressão da toupeira, mas sua companheira! Isso faz muita diferença na concepção de ser humano, e no que se pense ser necessário para viver a humanidade plenamente .

Se na época de Freud estava-se reprimindo a dimensão corporal do amor, a “toupeira”, isso já mudou
na maior parte da sociedade ocidental. E aqui volto ao tema inicial, perguntando: que dimensão reprimimos hoje? Por que há tantos infelizes no amor? Do que temos falta agora?

E, ouvindo na clínica a adolescentes e jovens que já experimentaram todas as formas de expressão sexual direta, mas que sentem-se vazios e solitários, penso que atualmente reprimimos a águia que habita
em nós, reprimimos o anseio por enlevos que façam olhar para nuvens e estrelas, para além do chão
e da concretude corporal.

A pergunta que fica é: esse impedimento de “voar” não é sintoma de algo mais profundo que cortou “asas” da águia e fez acreditar que o nível toupeira tem o significado mais profundo da existência?
Como psicanalista, gosto de procurar pelas origens – e, tal como Pfister, aprendi a faze-lo na interdisciplinaridade, por isso esta pergunta adquire o plural, pois a realidade é complexa e multicausal.

Uma das respostas parece estar no desaparecimento, durante o século XX, de um substantivo usado para definir o ser humano, o que fez um grande estrago: Trata-se da censura da palavra espírito, que deixou
de caminhar ao lado do adjetivo “humano”, e foi lançada aos céus para apenas pertencer ao reino das divindades. A proximidade com a religião, pela palavra espiritualidade, parece ter incomodado aos doutores do humano, muitas vezes cerceados pelos doutores do divino nas idéias e nos corpos. Quando foi possível, implodiram com o campo semântico que os oprimira, sem se dar conta de que agora estavam cerceando qualidades e liberdades do humano. Com isso, tornaram as concepções de humano “pobres de espírito”, de espirituosidade, e também de espiritualidade.

Desta forma, retiraram do ser humano o atributo de voar, de olhar para o alto e a partir do alto, elevando-se para além das mazelas do “pão e circo”. E o ser humano, sem o direito de ser espírito, começou a cavar túneis para zonas cada vez mais escuras de si, e a anestesiar-se para voltar a ter a sensação de vôo.
A busca por estar “alto” por meio de intoxicação química (drogas) não será um sintoma de busca da águia? O próprio nome de uma delas (ectasy), derivado de êxtase, não estaria revelando o anseio pelos vôos suprimidos?

Da mesma forma, a busca de amores frenéticos e descartáveis não será uma denúncia da saudade
de voar a dois? E como será o amor-águia? Será possível rimar amor humano com espírito humano?
Será que “humano, demasiadamente humano”, não terá, paradoxalmente, de sair do niilismo da toupeira
e voltar a olhar para o alto? Para Pfister, a pulsão originária contém espírito, esta seria a natureza humana desenvolvida na plenitude!

Mas, não há riscos na esfera da águia? Quais os sintomas de quem só vive a voar? O risco da outra ponta
é apenas cultivar alturas, e já não mais viver a corporeidade, o eros vital. Esta foi a denúncia de Freud,
e somos gratos a ele pelo resgate da sexualidade e suas dádivas. Mas terá de ser às custas
da supressão do espírito?

Como é difícil manter a tensão paradoxal entre as duas esferas! Como é complexo, ao ser humano, viver em múltiplas dimensões, sem esquecer que justamente o amor funde os diferentes. “Eros procura superar esses antagonismos, assimilando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma vontade. (...) Do ponto de vista cósmico, após a explosão do ser em múltiplos seres, o Amor é a dynamis,
a força, a alavanca que canaliza o retorno à unidade, é a reintegração do universo, marcada pelas passagem inconsciente do Caos primitivo à unidade consciente da ordem definitiva. A libido então
se ilumina na consciência, onde poderá tornar-se uma força espiritual de progresso moral e místico ”.

Este o conceito mais pleno de eros, do qual o adjetivo erótico guarda pouco. Não será essa redução também um sintoma de repressão do espírito?

Encontro em outro pensador, Paul Tillich (1886-1965), quase contemporâneo de Pfister, idéias fecundas
a respeito da reunião das forças do amor, especialmente no seu livro Amor, poder e justiça . Ali, Tillich rejeita a restrição de amor a emoção, embora afirme que não exista amor sem essa expressão emocional. Amor é ontológico, “é o poder propulsionador da vida” , e conforme a síntese de Etienne Higuet, para Tillich “o amor exprime, em todas as suas qualidades, uma tendência ou um desejo ontológico à reunião
dos elementos separados da vida com o fundamento ao qual pertencem, mas com o qual romperam,
nas condições da alienação existencial. A maior força do amor está na sua capacidade de reunir os seres mais radicalmente separados, as pessoas humanas individuais ”.

Em outras palavras, o amor inicia, constitui e reúne os elementos da vida, a começar com a reunião
do eu com o si mesmo. “O ser não é genuíno sem o amor que conduz tudo que existe para tudo mais
que existe” .

A expulsão da palavra “espírito” do imaginário ocidental, neste sentido, é um sinal desta ruptura
do ser e também da epistemologia, ou seja, é alienação do ser da sua essência e também alienação
do conhecimento de sua natureza mais profunda. A repressão de “espírito” reforçou a tendência à alienação que pervade o ser humano, e induziu ao ao esfacelamento do amor, reduzindo-o apenas à dimensão concreta ou emocional. Para Tillich, é necessário considerar quatro qualidades do amor, não tipos,
mas facetas do mesmo poder de reunião.:

"A primeira, epithymia ou libido, é o desejo de unir-se pelos sentidos à realidade material, no prazer
de comer e beber, na atração sexual ou na emoção estética. Não é busca do prazer pelo prazer, mas desejo de união com a realidade que é fonte do prazer, em vista da realização vital de si mesmo. A segunda, philia, é o pólo pessoal do amor, a qualidade de amizade, que reúne dois indivíduos humanos centrados
e participando um no outro em pé de igualdade. A terceira, eros é a qualidade mística do desejo amoroso. Eros busca a união com toda realidade portadora de valores, por causa desses valores: o belo
e o verdadeiro na natureza e na cultura e na sua fonte divina. Enfim, ágape é a qualidade transcendente
ou religiosa do amor, fonte transcendente do conteúdo do imperativo moral, criação do Espírito divino
e dimensão da vida eterna. Mesmo as "transcendendo" e sendo critério delas, ágape não existe isolada
das três outras qualidades do amor”.

Pode-se ver que Tillich não fragmenta seu conceito de amor, todas as facetas se interpenetram. Higuet assinala que para Tillich o amor inclui sempre todas as suas qualidades, pela unidade multidimensional da vida humana. Para Tillich, "há um elemento de libido até na amizade mais espiritualizada e no misticismo mais ascético. Um santo sem libido deixaria de ser uma criatura. Mas tal santo não existe".
Se fossemos usar a analogia dos animais, diria-se que precisaríamos agregar mais dois, mas os quatro teriam de poder reunir-se para representar seu conceito. Complexidade de símbolos que fica como sugestão para ser criado pelos leitores/as, pois perpassaria a dimensão deste escrito.

Se libido sem eros e agape se torna libertino ou perverso, agape sem libido e eros se torna moralista.
O primeiro merece a crítica de Tillich a Freud – de que seu conceito de libido retrata a libido perversa,
e não a libido saudável: “Somente uma vida pervertida segue o princípio dor-prazer.

(...) Na medida em que Freud descreve libido como o desejo do indivíduo de livrar-se de suas tensões,
ele tem descrito a forma pervertida de libido” . E Tillich comenta que implicitamente Freud o reconhece quando deriva a pulsão de morte da “ilimitada, jamais satisfeita libido”.

A segunda crítica, de um ágape sem libido e eros, é dirigida para aqueles que querem um amor desencarnado, e portanto, negador do corpo e do afeto. Desta forma, reprimem estas dimensões importantes, tal como também Adélia Prado expressa

Nem rezar eu sei sem corpo.... Portanto, para Tillich, são qualidades do amor que são reprimidas, que têm a ver com o conceito de ser humano e, portanto, com a repressão de que ele, além de corpo e alma, também é espírito.

Torna-se assim o ser humano “raso”, sem profundidade, preso na dimensão corpórea ou na afetiva, numa estética sem ética e sem verdade. Reunir o ser humano em essência e existência, reunir as qualidades
do amor (Tillich), reunir toupeira e águia (Pfister), eis o desafio proposto por estes pensadores para os tempos atuais.

Notas:

1. Freud, E. & Meng, H. (org). Cartas entre Freud e Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Tradução de Ditmar Junge e Karin H. K. Wondracek. Viçosa, Ultimato, 1998. 200 p. Nesta troca de correspondência, o tema “amor” é mencionado diversas vezes, e portanto se constitui em uma rica fonte
do diálogo entre psicanálise e outras ciências, como teologia, sociologia e antropologia.

Para conhecer as idéias de Oskar Pfister, vide minha dissertação de mestrado O amor e seus destinos:
a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e psicanálise. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2005.

Junito BRANDÃO apud Evaristo Eduardo de Miranda. Corpo: território do sagrado. São Paulo: Loyola, 2002, p. 170.

P. TILLICH. Amor, poder e justiça. São Paulo: Novo Século, 2004. Ibid, P. 36.

E. HIGUET, A Força de Eros No Pensamento Ético e Político de Paul Tillich. Correlatio n. 2. In: http://www.metodista.br/correlatio/num_02/a_higuet.htm. em 4.9.06.

P. TILLICH. Amor, poder e justiça. São Paulo: Novo Século, 2004.

E. HIGUET, op cit.

P. TILLICH, Amor, poder e justiça, p. 41

P. 39, as duas próximas citações também.

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