aprimoramento - topo banner - clínica psicológica - puc-sp

BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


22. Falha Materna e Desenvolvimento da Mente: Um Estudo de Caso

INTRODUÇÃO

Percebi o meu interesse pelo caso a partir da leitura da entrevista da mãe, no processo de triagem. Existia algo que estava se apresentando na relação da mãe e filho em que me sentia de certa forma próxima, como se eu pudesse entender aquela dinâmica facilmente. Realmente houve uma empatia com a criança, imediatamente. A empatia não parte de um conhecimento teórico, e sim através de sensações, algo que não se consegue explicar racionalmente, pois se trata de um conhecimento direto. Assim, de alguma forma, senti muita vontade e capacidade em atender esta criança. Usarei nomes fictícios para o paciente, sua mãe e seu pai que serão: Pedro, Márcia e Vitor, respectivamente.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A fundamentação teórica principal que guiou este atendimento foi a da psicanálise de Donald Winnicott. Aqui se procede a um recorte maior na abordagem psicossomática, tema do aprimoramento, sobre a qual segue-se uma breve apresentação como uma introdução ao caso. De qualquer forma, na análise, mais adiante, haverá um aprofundamento em conceitos desenvolvidos pelo autor escolhido, relacionados ao caso em foco.

Segundo Tosta (2001), existiriam duas formas mais utilizadas para o termo "psicossomática": 1) Na acepção adjetiva, como no caso de "distúrbio ou transtorno psicossomático", que estaria se referindo a um tipo de dificuldade na integração psique-soma; e 2) "Psicossomática", utilizado como substantivo, que se refere a uma área de conhecimento, pesquisa e de prática, quando estão envolvidas questões da psique e do soma.

A psicossomática não necessariamente refere-se à patologia, assim:

Compartilhando a visão winnicottiana, entendemos que saúde psicossomática é uma conquista do ser humano em desenvolvimento, na sua inter-relação fundamental com o ambiente. Pode-se dizer que saúde psicossomática se revela por um estado de integração da psique e do soma, de tal maneira que resulte numa forma humana de ser e fazer no mundo. (Tosta, 2001, p. 11).

A integração seria a busca de toda a nossa existência, através do nosso amadurecimento pessoal, a integração numa unidade psicossomática.

De acordo com Winnicott (1994):

A enfermidade no transtorno psicossomático não é o estado clínico expresso em termos de patologia somática ou funcionamento patológico (colite, asma, eczema crônico), mas sim a persistência de uma cisão na organização do ego do paciente, ou de dissociações múltiplas, que constituem a verdadeira enfermidade. (p.82).

Para Winnicott (1994), esta cisão seria a divisão entre o cuidado da psique ao cuidado do soma. De acordo com Tosta (2001), a dissociação psicossomática pode se constituir como uma defesa comum e, neste caso, não nos seria prejudicial no processo de integração. Mas a cristalização desta organização defensiva, a partir de freqüentes fracassos na constituição do self, seria um real obstáculo no processo de integração.

De acordo com Winnicott (1994), existe um aspecto positivo, ou melhor, esperançoso da enfermidade psicossomática, que seria a tendência do indivíduo chegar à unidade da psique e do soma, correspondente ao processo de personalização.

DESCRIÇÃO DO CASO

Sobre a história do paciente

O meu primeiro contato com o caso (Pedro, 5 anos) foi através de uma entrevista com sua mãe, quando ouvi um pouco sobre sua história, a qual se iniciou antes do seu nascimento. A mãe narra como estavam as suas expectativas e o seu momento de vida, bem como a sua relação com o pai do paciente, antes da sua gravidez, até o momento presente. Márcia conta que não tivera filhos anteriormente, apesar de ter ficado grávida três vezes, havendo abortos "naturais". Relata que os médicos lhe diagnosticaram com uma doença chamada de "endometriose", ou seja, que existem alguns problemas em seu útero, dificultando-lhe a sustentação do bebê dentro dele. Além disso, ela também tinha um tumor no útero, o qual foi retirado, após o nascimento de Pedro.

A mãe refere que existe uma diferença grande de idade entre ela e o pai de paciente (Vitor) e que ele já tinha dois filhos, do seu primeiro casamento antes deles se conhecerem. Segundo Márcia, Vitor (pai) sempre quis mais um filho, mas sempre houve a dificuldade da mãe de engravidar. Os pais de Pedro permaneceram casados por mais ou menos cinco anos e se separaram pelas constantes brigas. Num dia de tentativa de reconciliação do casal (após oito meses de separação), a gravidez aconteceu. Foi um processo difícil para ela decidir ter o filho, chegando a pensar em abortá-lo ou colocá-lo para adoção, após o nascimento. Acrescenta que, apesar da separação do casal, o pai insistiu que ela tivesse o filho, garantindo-lhe que mesmo não sendo mais casados, ele lhe daria apoio.

Márcia relata que houve dificuldades durante a gravidez, ela teve muitos enjôos e os médicos lhe disseram que o feto estava com sintomas de estresse. Segundo a mãe, brigas e conflitos entre ela e o pai seriam a causa deste estresse. Imaginava que o bebê estivesse sentindo estes conflitos, além das dificuldades que ela estava vivendo por ter de enfrentar este período sozinha.

Pedro conseguiu sobreviver a todas as dificuldades vividas pela mãe em sua gravidez, apesar desta ter sido bastante conturbada e também, de alguma forma, até mesmo indesejada.

Desde este período até o momento presente, Márcia sente não ter tido o apoio esperado do ex-marido e mostra-se muito inconformada e rancorosa por esta situação. O parto foi de emergência, pois o bebê estava com taquicardia e a mãe teve uma reação física à anestesia. Assim, a mãe só pôde ver a criança após o seu segundo dia de nascido, pois ele teve de ficar em observação, no hospital.

Após o primeiro mês do nascimento de Pedro, o leite da mãe secou e teve que oferecer leite industrializado para seu filho. Mas Pedro apresentou uma espécie de alergia, tendo também uma intoxicação, permanecendo numa UTI durante 72 horas. Por sua vez, a mãe relata que, nesta época, também não conseguia se alimentar e até hoje apresenta muitos problemas nesta área (anorexia nervosa e diarréias).

Além disso, conta que quando o filho começou a engatinhar percebeu que havia algo diferente em um de seus pés. Ao levá-lo no médico, foi diagnosticado como tendo tido uma má formação, chamada de "brida de constrição", na qual os pés se formaram sem as articulações. Ainda no útero, o cordão umbilical teria ficado em volta, apertando seu tornozelo, causando o problema e aparecendo somente nesta época. Mas segundo a mãe, este problema foi superado e ele hoje se movimenta sem quaisquer dificuldades. Apesar de que, mesmo recentemente, Pedro apresentou dores neste local, ou um pouco atrás do joelho. Estas dores são crises esporádicas e não permanecem durante muito tempo. Segundo a mãe, acontecem em dias mais estressantes para a criança.

Busca terapia para seu filho, pois percebe que este vive "no meio de uma guerra" (sic). A mãe relata as seguintes queixas: Pedro ainda usa fraldas, à noite, pois às vezes urina e defeca sem controle. Além disso, sofre de crises de otite e gripes. Algumas vezes, apresenta um comportamento mais agressivo que o usual, que aparece de maneira repentina. Este comportamento é exibido mais freqüentemente na escola.

Conta também que até hoje tem problemas judiciais com seu ex-marido, pois este já tentou ter a guarda do filho e, segundo ela, também já tentou seqüestrá-lo. A mãe tenta através da justiça que o pai não tenha direito às visitas, pois alega que estas prejudicam psiquicamente seu filho. Relata que o filho sempre retorna da casa do pai com dificuldades em se comunicar, agressivo, faltando-lhe os cuidados higiênicos básicos e com dificuldades para dormir e se alimentar.

Além disso, refere-se às dificuldades financeiras que têm passado, destacando sempre a sua origem, por ter tido uma família muito rica. Mostra ser doloroso não ter mais a sua vida de antes e, tendo como justificativa as dificuldades em se sustentar, conta que só tem uma cama de casal em sua casa e por isso dorme com seu filho.

Nas entrevistas com a mãe era muito difícil a comunicação porque esta se mostrava muito confusa em seu discurso, misturava, a todo o momento, relatos de sua história (infância, outras relações amorosas), a vida do seu ex-marido e a vida de seu filho. Mesmo quando eu tentava focar e perguntar um pouco mais sobre a queixa e a rotina do paciente, ela não conseguia ser direta e nem falar somente sobre o filho. Márcia acabou falando pouco sobre seu filho e bastante sobre seu ex-marido (aparentando raiva e a sua dificuldade em não ter elaborado a separação).

Sobre o paciente e o atendimento

O paciente se mostrou uma criança muito fácil de lidar, aceitou facilmente, desde o início, entrar na sala sem a presença da mãe. Comunicativo, tem um vocabulário às vezes até formal para uma criança de sua idade. Apesar de ser comunicativo, também se mostrava reservado, mas aos poucos foi se mostrando confiante e mais espontâneo durante as sessões.

No primeiro dia de atendimento, ele esperou que eu me apresentasse e lhe "permitisse" que explorasse e brincasse com os objetos. Sempre tentava ser "adequado" e educado e tentava disfarçar a sua timidez. Aproximou-se da caixa cautelosamente e observava com cuidado cada brinquedo. No final da sessão dizia que não gostava de bagunça e queria arrumar a sala e brinquedos de forma bem organizada.

Um dos pontos marcantes dos atendimentos era o atraso do paciente em praticamente todas as sessões, de normalmente vinte minutos. Na entrada, quase sempre, a mãe se justificava pelo seu atraso por questões de doença da própria (normalmente ligados a vômitos e diarréias e febres), procurando se desculpar. O freqüente atraso acabava influenciando no andamento das sessões, pois ele sempre ficava preocupado e muito ansioso, querendo brincar rapidamente antes que o tempo terminasse.

Na maioria dos atendimentos também aconteceu da mãe não estar presente no término e Pedro tinha que ficar sozinho na sala de espera aguardando sua mãe. Nestas ocasiões, ele parecia ansioso e inseguro por não ver a mãe esperando-o, mas parecia tentar não demonstrar e acabava se adaptando à situação, brincando com a caixa lúdica que fica na sala ou conversando com as pessoas presentes no local.

Assim como o início da sessão era retardado pela mãe, na saída também era difícil finalizar, pois ela sempre estendia a justificativa para falar e desabafar sobre os seus problemas pessoais.

Durante os atendimentos, as sessões ficaram centradas em sua brincadeira preferida: polícia e ladrão. Ele pedia para ser o policial e eu seria o ladrão. Inicialmente, a polícia e o ladrão lutavam armados com espadas e revólveres. Sempre deixei o paciente direcionar a brincadeira, às vezes oferecendo para ele mais possibilidades nas formas de brincar. Desde que começamos a brincar de polícia e ladrão, ele sempre repetia a escolha das armas e dos objetos que ele queria utilizar.

Nas primeiras vezes foi difícil a comunicação entre nós. Muitas vezes parecia que ele sabia como queria brincar e esperava que eu adivinhasse, mas quando eu não conseguia, ele se esforçava para tentar me explicar e eu me esforçava para entendê-lo. Aos poucos, ele ia conseguindo se expressar e o esforço foi se tornando menor de ambas as partes. Começamos a nos entender mais facilmente e a brincadeira acontecia mais espontaneamente.

Depois de ficarmos um período na brincadeira como simplesmente uma luta, Pedro iniciou a mesma brincadeira de outra forma. Ele queria construir um esconderijo para o policial e outro para o ladrão. Dentro da sala existiam alguns móveis, os quais foram utilizados, para a construção desta brincadeira. Havia: uma mesa grande, duas cadeiras para adultos, 1 mesa infantil com 4 cadeiras infantis e um colchonete.

A mesa grande era a escolhida para ser seu esconderijo e ele ficava embaixo desta. Usávamos duas cadeiras também para fechar a entrada de sua mesa, além de duas cadeiras do conjunto infantil, na frente das cadeiras maiores. O colchonete ficava no chão e Pedro deitava sobre ele. O paciente também pedia que eu colocasse, no final de toda a arrumação a tampa da caixa lúdica numa abertura que sobrava do seu esconderijo, a qual ele dizia que era a janela e que precisava de um escudo. Eu ficava apenas com duas cadeiras e a mesa infantil que sobraram, permanecendo embaixo desta com as cadeiras na frente também.

Pedro sempre pedia que eu elaborasse um plano para tentar invadir seu esconderijo. Todos os planos que eu elaborava, ele conseguia destruir, pois ele criava saídas e formas de se proteger sendo impossível que eu entrasse. Além disso, o próprio esconderijo também estava muito fechado com as cadeiras.

Embora eu sempre mantivesse a atitude profissional, havia alternância entre a brincadeira em que atuávamos como polícia e ladrão e os momentos em que eu era colocada por ele no lugar de terapeuta e ele agia como paciente. Nesses momentos, ele me pedia ajuda para construir o seu esconderijo e algumas vezes para combinarmos como se daria a brincadeira.

O objetivo principal da brincadeira de polícia e ladrão era ele ter um esconderijo "impenetrável". Ao mesmo tempo, ele esperava que eu chegasse até ele. Dessa forma, ele me auxiliava a criar muitos planos de entrada em seu esconderijo. No entanto estes planos se tornavam inválidos, pois o seu esconderijo era muito forte e parecia que ele nunca se abriria para minha entrada. Parecia que Pedro se sentia muito bem e gostava de repetir a brincadeira todas as sessões e até de uma forma quase que metódica.

Após muitas sessões (mais ou menos seis meses), a minha entrada no seu esconderijo parecia mais próxima e ele criou uma senha de acesso, facilitando que eu pudesse descobrir. Um certo dia, deixou que eu entrasse em seu esconderijo e roubasse uma de suas armas. Ele permitiu que eu levasse a espada até o meu esconderijo, indo posteriormente, até lá para pegá-la de volta. A abertura estava sendo construída aos poucos e a confiança de que esta não seria desastrosa, foi sendo solidificada.

De alguma forma, a comunicação entre Pedro e a terapeuta acontecia na maior parte do tempo dentro da brincadeira, ou seja, dentro do que Winnicott em sua teoria caracterizou como a terceira área da experiência humana, que seria o espaço potencial. A postura adotada era de maior presença e envolvimento na brincadeira, fazendo, algumas vezes, interpretações acerca das escolhas, atitudes, gestos ou falas do paciente. Mas a criança também apresentava questões muito importantes através da comunicação verbal. Ele falava sobre situações que o preocupavam no seu cotidiano, ou repetia falas de sua mãe, as quais esta já havia colocado para mim, no final das suas sessões. A comunicação verbal da sessão se complementava com a linguagem lúdica, viabilizando o acesso à vivência da criança. A situação existencial de Pedro, assim como seus conflitos e formas de defesa foram se esclarecendo a partir dos atendimentos, complementados pela contextualização fornecida pela mãe.

ANÁLISE DO CASO

Aqui se apresenta a análise do caso tendo como referência a teoria winnicottiana e alguns de seus conceitos. Utilizarei, também, como base a tese de doutorado da professora doutora Rosa Maria Tosta, supervisora deste aprimoramento.

Em relação ao contato direto com o paciente e sua mãe, iniciarei contando sobre os conteúdos importantes trazidos nos encontros com a mãe e posteriormente farei a ligação com os atendimentos de Pedro.

Muitas vezes, a mãe pedia para conversar comigo no final do atendimento de seu filho, para contar situações muito delicadas sobre ele. Ela dizia que seriam informações que contribuiriam para o atendimento. Assim, marcávamos um horário extra, em que estivéssemos somente nós duas. Nestas ocasiões, Márcia dificilmente falava somente das questões do filho, porque seu discurso, e consequentemente, sua percepção revelavam a confusão que vivia e que envolvia seu filho, o ex-marido.

Uma das questões trazidas por Márcia, que seria importante relatar, foi relacionada aos seus sintomas psicossomáticos. Ela sofre de anorexia nervosa e muitas vezes atrasava o atendimento de seu filho por ter crises de diarréia, vômito ou febre. Além disso, como já foi dito, ela teve "endometriose", causando três abortos, como também o tumor no útero. Como o atendimento não foi feito com a mãe, não queremos aqui nos aprofundar sobre suas questões pessoais e as doenças psicossomáticas apresentadas por ela, mas queremos sim perceber como isso estaria afetando o filho, já que este constitui aspecto fundamental do ambiente em qual Pedro vive.

Márcia sempre se queixava e mostrava que a relação com seu filho era de muito esforço e parecia tê-lo como um fardo em sua vida. Mostrava-se se sentir incapaz, frágil e limitada para "suportar" o filho. A dificuldade da mãe em assumir e se responsabilizar pela maternidade, psíquica e emocionalmente, se apresentava de forma marcante.

O holding seria uma das funções básicas que o meio deve prover à criança para que a integração psíquica e somática deste ser possa ser realizada de forma saudável. De acordo com Tosta (2001):

O bebê precisa ser literalmente "segurado" e, de uma, forma especial, como uma globalidade, para que comece a ter a sensação de todo e não dos fragmentos iniciais de sensação de ser. Seria, então, a "mãe" que, ao perceber o seu bebê como uma unidade e tratá-lo como tal, ou seja, como uma pessoa, permitirá, a partir da maneira com a qual carrega seu bebê, aconchegando-o em seu colo e assim juntando as suas partes ou fragmentos de self, esta sensação de unidade. (p.21)

Além disso, a mãe mostra sentir-se muito frustrada em não poder "dar" um pai que fosse presente, um pai que, na verdade, esta queria para seu filho. Percebo que a frustração não se refere somente em não poder dar um pai "suficientemente bom" para Pedro, mas também a sua frustração como mulher de estar sozinha, não podendo contar e dividir com alguém o "peso" de ter um filho. Dessa forma, ela sempre se coloca como vítima de qualquer situação que envolva seu papel de mãe. Conta que mesmo com todas as dificuldades tem se esforçado muito na tentativa de conseguir dar conta do seu papel de mãe, trazendo-me seus aspectos positivos e o que tem conseguido dar ao filho.

O que acontece é que sem o marido com o qual dividir este peso, Márcia sobrecarrega emocionalmente seu filho chegando a verbalizar: "você é meu companheiro e eu sou sua companheira, a nossa família é só nós dois" (sic). Assim, ela pede que o filho se comporte como adulto e seja compreensivo em relação às suas dificuldades.

Dentro deste contexto, questionamo-nos sobre a experiência que o paciente está tendo por ser participante de toda essa confusão de papéis. Como poderia estar sendo visto em suas próprias necessidades? Estas necessidades podem ser reconhecidas? Que indivíduo está sendo constituído nesta situação familiar?

Márcia conta também sobre situações de agressividade que seu filho apresenta, esporadicamente, na escola, em casa, com ela e que têm se tornando mais freqüentes atualmente. Eram momentos que apareciam repentinamente, chegando assustar a mãe, pois normalmente, seu filho é "bonzinho", obediente e compreensivo (a nosso ver excessivamente).

Além destas observações, durante o processo, a mãe também trazia algumas falas importantes do filho. Assim, relata que ele dizia que não queria mais ouvir falar de seu pai, ou que queria matá-lo. Além disso, também falava que não queria crescer, pois queria ser criança para sempre. A mãe também trazia que em algumas noites, Pedro dormia mal por ter dores na perna esquerda. Ela acredita que seriam resquícios do problema da "brida de constrição". Mas de algumas forma, ela associou estas dores ao medo do filho ter de crescer. E também aconteceu do próprio paciente fazer esta associação, num dia de atendimento quando me falou: "Tia, as dores que sinto só podem ser dor de crescimento." (sic).

Em relação aos atendimentos, o que mais chamou a atenção no paciente foram as recorrentes brincadeiras de polícia e ladrão, a escolha dele por este tema e a repetição da organização do espaço como também pela ordem das etapas da brincadeira. Percebo que a necessidade surgia em alguém procurá-lo, ele poder se esconder, esse alguém tentar invadir seu espaço, mas nunca ser possível que ocorresse. Ele estava sempre muito fechado, protegido e tinha sempre o controle desta proteção e em algum momento simplesmente se abriria, mas nunca seria invadido. Ele sentia que a escolha em poder se abrir e trocar com o outro seria dele e não de fora.

Sabe-se que a brincadeira seria a tentativa da elaboração de uma questão importante para o paciente e a repetição desta estaria mostrando que esta questão ainda teria de ser explorada até a sua possível elaboração. Também poderia ser lida como uma apresentação da vivência do paciente ou uma oportunidade de mudar o rumo de algo. Esta brincadeira, a qual foi central no atendimento, juntamente aos encontros com a mãe serão os focos para o estudo deste caso.

Através do contato com a mãe, eu pude perceber como era representativa a brincadeira do paciente, pois era evidente como este se sente invadido pela mãe, a todo o momento. Márcia espera que o filho compartilhe as dificuldades da sua vida com ela, dessa forma ela conta para Pedro sobre as brigas que tem com seu pai, seus motivos e detalhes. Através da brincadeira, o paciente podia realizar algo que em sua vida real não era possível, se defender da invasão do ambiente, da invasão materna.

Segundo Tosta (2001):

Quando há o suporte ambiental que possibilita a vivência do "self", estamos diante do "self" verdadeiro, porque o movimento partiu do bebê, de dentro para fora. Se, ao contrário, há algum tipo de invasão, o bebê é obrigado a reagir, então o movimento tem sua direção de fora para dentro. O bebê pode, então, formar uma "prótese" de seu "self" verdadeiro, destinada a lidar com o ambiente e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade para seu verdadeiro "self". Esta "prótese" que, de certa forma, substitui a função de "holding" é o falso "self". (p. 33)

Pensando mais a respeito do ponto central da brincadeira, a proteção, vemos que existe esta necessidade na vida do paciente, de sempre estar de se protegendo, como também protegendo a sua mãe. Ele protege, na verdade, seu self verdadeiro, relacionando-se com o mundo a partir do seu falso self. A sua proteção é necessária, pois esta nunca aconteceu de forma suficientemente boa. Essa proteção foi utilizada em todos os nossos atendimentos. Pedro chegou mesmo a falar: "Meu nome é proteção, sem meu escudo eu não sou ninguém" (sic). O holding (sustentação) necessário desde o nascimento, como uma das funções maternas para a integração da criança, no seu caso não foi suficientemente bom, havendo muitas falhas. Percebemos, através da história da mãe, a dificuldade em ter dado o "suporte" emocional para seu filho, pois por todas as dificuldades as quais a mãe passou desde a gravidez, não foi possível oferecer a segurança necessária para seu filho.

Dessa forma, Pedro teve de desenvolver uma auto-sustentação precocemente, a qual envolve proteção e seu próprio suporte emocional. A partir do relato do caso, vemos que o uso exacerbado da mente ocorre quando ele tem que ser compreensivo com as falhas da mãe, tem que ser "bonzinho" e até mesmo compartilhar as dificuldades em que a mãe está passando. Sendo compreensivo com a mãe, ele a protege de sua raiva e de ter de perceber as necessidades de sua mãe antes das suas.

Ainda complementando, é imprescindível que entendamos o conceito de mente, chegaremos assim, mais próximos do tema deste trabalho. Qual seria o malefício da utilização excessiva da mente? Por que esta criança necessita excessivamente do uso de sua mente?

De acordo com Winnicott (1949), quando ocorre o amadurecimento saudável do indivíduo o psique-soma, ou esquema corporal não existe a mente como uma entidade isolada. A psique e o soma não deveriam ser separados, pois o bebê é o corpo e a psique integrados, o que ocorre a partir da "elaboração imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é da vivência física". (Winnicott, 1949, p.411)

A mente, então tem como uma de suas raízes um funcionamento variável do psique-soma, que trata da ameaça à continuidade de existência que se segue a qualquer fracasso da adaptação ambiental (ativa). O desenvolvimento da mente é, portanto, grandemente influenciado por fatores não pertencentes à esfera especificamente pessoal do indivíduo, incluindo acontecimentos fortuitos. (Winnicott, 1949, p.413).

Segundo o autor, o funcionamento excessivo da mente estaria relacionado a certos tipos de fracasso materno, que seria um maternagem inconstante. A mente se desenvolveria em oposição ao psique-soma, tentando controlar os cuidados ao psique-soma. É como se a mente precisasse substituir a função de proteção e holding, que teriam que vir do meio ambiente, mas que não foram suficientes.

Segundo Winnicott (1949):

Como resultado mais comum de um grau pequeno de cuidado materno torturante nos estádios iniciais da vida infantil, o funcionamento mental torna-se uma coisa em si, praticamente substituindo a mãe boa e tornando-a desnecessária. Clinicamente, isso pode acompanhar uma dependência da mãe real e um crescimento pessoal falso com base na submissão. Esse é um estado de coisas extremamente desconfortável, especialmente porque a psique do indivíduo se deixa "atrair" por essa mente, afastando-se do relacionamento íntimo que originalmente mantinha com o soma. O resultado é uma mente-psique, que é patológica. (p. 414).

Dessa forma, o funcionamento excessivo da mente se torna um empecilho na integração do sujeito e na construção do self verdadeiro. Quando a mente é utilizada de forma exacerbada, o falso self se torna mais presente, não deixando que a agressividade que surgiria do seu self verdadeiro apareça.

Retomando o que foi dito anteriormente em relação à agressividade do paciente, o ambiente exige que ele tenha freqüentemente uma atitude compreensiva e muitas vezes precisando até mesmo compartilhar com a mãe suas dificuldades e falhas. Dessa forma, não existe um ambiente que pode acolher a raiva da criança em relação às suas falhas, e assim, seus momentos de agressividade, que nunca podem aparecer, acontecem de forma brusca e repentina, pois existe aí uma dissociação.

A partir da necessidade de construção e utilização do falso self por parte dele, surge então, a dificuldade da integração do psique-soma, havendo assim, a dissociação, constituindo - se o distúrbio psicossomático.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando a introdução, percebo que a minha empatia inicial contribuiu para o desenvolvimento do caso, pois existiam muitas questões que eram angustiantes para o paciente, as quais eu já vivenciei, de forma parecida, em minha vida e pude ter a possibilidade de trabalhá-las em meu processo de psicoterapia. Dessa forma, pude me sensibilizar com dificuldades vivenciadas por Pedro, mas ao mesmo tempo, com o amparo da supervisão, sem me envolver excessivamente. Segundo Winnicott, essa sensibilização possibilita a abertura para a formação de um vínculo entre o terapeuta e paciente, o qual seria necessário para promover a transformação almejada no atendimento psicoterápico.

Espero, através dos atendimentos de Pedro, que este possa utilizar o espaço clínico e a nossa relação, através do vínculo construído, para o seu desenvolvimento pessoal, em direção à sua integração psique-soma. O vínculo estabelecido, através do ambiente "suficientemente bom", pode fazer o papel de sustentação (holding), possibilitando que o paciente possa se expressar a partir do seu self verdadeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Tosta, R. M. Psicossomática na Infância. Um estudo da criança com artrite reumatóide.
Doutorado em Psicologia Clínica, PUC-SP, São Paulo, 2001.
Winnicott, D.W. Da Pediatria à Psicanálise. 4ª Edição. Rio de Janeiro: F. Alves, 1993.
Winnicott, D. W. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.