aprimoramento - topo banner - clínica psicológica - puc-sp

BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


14. Agressividade: Uma Refelexão Fenomenológica-Existêncial

I - INTRODUÇÃO

O tema agressividade surgiu nas supervisões dos atendimentos terapêuticos desenvolvidos pelos estagiários do Aprimoramento na Abordagem fenomenológica-existencial da Clínica Ana Maria Poppovic da PUC-SP, quando observamos que vários pacientes apresentavam comportamentos agressivos.

Ao buscar o esclarecimento da maneira de viver de cada um dos pacientes, retomamos a história de suas vidas, focalizando as possibilidades e as dificuldades que eles encontravam de realizar a seu próprio existir. Percebemos nos modos de viver dos pacientes, que a agressividade aparecia junto com sentimentos de impotência e de incapacidade.

Na tentativa de ampliar o entendimento destas problemáticas, pesquisamos alguns trabalhos que tratam do tema agressão e violência e encontramos, no livro Poder e inocência de Rollo May, idéias importantes para a compreensão dos comportamentos agressivos dos pacientes. Assim, neste trabalho optamos por apresentar alguns pontos importantes da história da vida de três pacientes e também uma síntese da compreensão da agressividade desenvolvida pelo autor já citado.

II - A AGRESSIVIDADE É UMA EXPRESSÃO DE PODER

A palavra poder deriva do latim, posse, ser capaz. O ser humano compensa a fragilidade inerente à sua constituição por uma capacidade muito mais ampla de inventividade e de criatividade diante de situações inusitadas. A criatividade é pois, um correlato do poder enquanto fonte de vitalidade. Um ser humano apto para se mostrar inventivo e para responder criativamente às situações da vida é aquele cujo poder não foi usurpado na decorrência do processo vital. Por outro lado, responder mecanicamente e previsivelmente pode ser um indício da ausência de poder e da falta de criatividade no devir de uma existência.

A potência e a impotência são estruturas inerentes ao ser do homem. Tais qualidades se dão em uma dialética cujas polaridades se encontram atualmente bloqueadas em ambos os termos de sua composição: as conotações negativas que se infiltraram na noção de poder comum ao homem contemporâneo e a dificuldade de confrontação com os limites que se espelham na dinâmica da ausência de poder, se mostram como obstáculos para a vazão e a realização de si mesmo. A incapacidade de admitir o desejo de potência, por um lado e a dificuldade de lidar com a impotência, por outro, se tornaram desafios para a ampliação e a intensificação das capacidades do homem.

No entanto, a capacidade de inventividade humana foi o elemento que tornou possível o surgimento da civilização. A cultura é a maior afirmação de poder da humanidade. Ao contrário das outras espécies de vida, nós não agimos impulsionados unicamente pela influência cega dos instintos e dos condicionamentos naturais, mas somos dotados de competência para arbitrar em relação aos nossos atos, o que resulta em uma capacidade muito mais ampla de liberdade e de condicionamento cultural e inscreve o ser humano em um campo de abertura para possibilidades que o aloca em um espaço diferenciado enquanto espécie animal.

Este legado condiciona uma margem de responsabilidade compatível com a nossa liberdade. Somos a única espécie de vida que é chamada para se responsabilizar pelo ser e que pode, ao longo de sua história, perder ou extraviar o ser. O sentido de nossa existência não é dado desde sempre, não é um fator automático e inconsciente, mas depende de uma construção que envolve o engajamento e a dedicação ao longo do desenvolvimento da vida e nas escolhas por nós empreendidas. Essas capacidades são a fonte de nosso poder.

A impotência, ao contrário, se inscreve a partir do imponderável. Fomos lançados no mundo sem podermos escolher onde e quando nascemos. Nada podemos diante da morte e muito pouco diante dos reveses da vida, da doença, etc. Toda vez que lidamos com a incapacidade de conferir sentido em relação ao mundo e aos nossos esforços, deparamo-nos com a impotência. O homem pode plantar uma semente e preparar o solo com os nutrientes adequados, mas não pode garantir o sucesso de sua germinação. A impossibilidade da colheita pode levar a uma falta de sentido quanto ao engajamento empreendido e insegurança como modo de habitar o mundo.

O sentido da significação pessoal e da auto-estima depende em muito da capacidade de ser reconhecido nas relações interpessoais. Uma criança cujos esforços por atenção e reconhecimento são sistematicamente ignorados pode desenvolver no futuro um sentimento de medo e apatia. Impossibilitado de se afirmar em um mundo inóspito, o processo vital acaba sofrendo um empobrecimento cujo ponto culminante é a falta de engajamento: não posso me responsabilizar e me engajar em nada, afinal, meus esforços são sempre ignorados.

Chegamos assim na apatia que é a última fronteira antes do estado terminal da impotência, ou a morte. A violência, por sua vez, é também um fruto da impotência, mas, paradoxalmente, ela se abre como a manifestação de uma reação a este estado de impotência, ou como diz Rollo May:

"Os feitos violentos em nossa sociedade são realizados em sua maior parte por aqueles que tentam estabelecer sua auto-estima, defender a própria imagem e demonstrar que também significam alguma coisa na ordem dos acontecimentos. Independentemente do uso errado ou desviado que possam ter tido estas motivações ou do aspecto destrutivo de sua expressão, elas são, apesar de tudo, manifestações de necessidades interpessoais positivas". (May, p. 22)

A seguir, apresentaremos a história de uma das pacientes que ilustra claramente a inter-relação do sentimento de impotência, dificuldade de realizar o seu próprio existir e da agressividade:

T., uma paciente separada de 42 anos e dois filhos, veio buscar terapia, pois, segundo ela, a sua vida havia fugido completamente de seu controle. Sentia-se impotente, mas não tinha a menor consciência deste sentimento. Seus surtos de violência haviam levado-a até mesmo aos tribunais. Ela fora processada pelo ex. marido por ter agredido-o com uma faca. Seus sonhos versavam acerca de cachorros bravos que mordiam o seu pescoço e a derrubavam no solo. Creditava a estes cães a pessoa de seu ex. marido, uma vez que ambos haviam se agredido fisicamente e, segundo ela, ele era o responsável por sua derrocada. Ela dizia que quando casaram o ex-marido a fez desistir de seu trabalho para cuidar dos filhos e até aquele momento ela se encontrava desempregada e dependente de seus favores. Em inúmeros sonhos, homens invadiam a sua casa e deitavam no seu sofá predileto, ou então roubavam sua bolsa na rua. Depois da separação, o seu ex. marido ainda freqüentava a sua casa e conforme os seus relatos, invadia o seu espaço. Seu ódio dirigia-se principalmente à figura do ex, mas, em certos momentos, atribuía aos filhos o motivo de sua condição, chegando a agredi-los fisicamente.

T. sofria enormes dificuldades financeiras e a necessidade de sustentar os filhos impedia, de certo modo, que ela pudesse investir em um vínculo de trabalho. Ela havia sido processada pela escola de seus filhos e estando com o "nome sujo na praça" não era admitida em nenhum emprego.

Vemos que sua violência se dirigia a todos aqueles que, segundo ela, usurpavam o seu poder de ser. Neste caso, a necessidade de auto-afirmação de sua capacidade de existir se inscrevia de forma violenta na direção daquilo que ela interpretava como uma barreira à sua auto-estima e ao desenvolvimento de seu crescimento pessoal:

"Enfrentaremos ondas de violência enquanto as experiências de significação forem negadas às pessoas. Todo o homem tem necessidade de um sentido de significação pessoal; e se não pudermos torná-lo possível, ou mesmo provável, ele será adquirido por meios destrutivos. O grande desafio é encontrar maneiras pelas quais as pessoas possam alcançar significação e reconhecimento sem que seja necessário recorrer à violência destrutiva". (May, p. 130)

Por outro lado, este procedimento a isentava de ter consciência do seu poder e da responsabilidade pela sua impotência, ao mesmo tempo, que conferia um poder exagerado àqueles que, segundo ela, eram os responsáveis pela sua derrocada. Diante de tal situação, ela se sentia cada vez mais impotente e incapaz de "tomar as rédeas" de sua própria vida. Os acessos de cólera eram uma reação a esse estado de impotência. A violência aparecia como o resultado final de um processo cujo sentido envolvia uma reação à impotência e uma luta por significação pessoal e pelo estabelecimento da auto-estima.

Ao atribuir aos outros toda a responsabilidade pela sua derrocada ela se colocava em vínculos de dependência e se sentia cada vez mais impotente. A reatividade da resposta violenta pode engendrar um ciclo vicioso que deposita no outro toda a responsabilidade pelo sentimento de impotência. O outro passa a ser o "senhor todo poderoso" que usurpou as possibilidades de sentido e de desenvolvimento de uma existência: "se eu não posso ser feliz é por culpa do outro".

Esta dinâmica não permitia a ela apoderar-se de sua potência, ou afirmar o seu poder de ser. Sua vitalidade escorria de suas mãos e cada vez mais a falta de autonomia e de competência para empunhar as suas escolhas e encontrar um sentido na vida se mostravam como uma realidade.

No momento em que ela pôde aceitar a sua impotência diante dos julgamentos e atitudes do outro, pôde admitir que sua violência prejudicava principalmente à ela.

Outras vezes, ela sonhava que era rejeitada em situações sociais. A rejeição fora uma constante na vida de T. Logo ao nascer, T. fora registrada como irmã de sua mãe e filha de seus avós, pois sua mãe desconhecia o pai, o que era visto como um motivo de grande vergonha na família. Segundo os seus relatos, seus familiares prefeririam que ela "nem tivesse nascido". Quando ficou mais velha, T. foi morar com a tia que, segundo ela, era uma bruxa e a tratava como a "gata borralheira". Enquanto suas primas ganhavam presentes e eram bem tratadas, ela tinha que realizar os trabalhos domésticos.

Toda vez que seus filhos ficavam na casa do pai e não ligavam para ela, T. sentia-se muito abalada. Esta atitude era interpretada por ela como falta de consideração por quem deles havia cuidado. Seu desejo de ser considerada e aceita era diretamente proporcional à sua baixa auto-estima.

O trabalho terapêutico envolveu a aceitação deste sentimento de rejeição e a possibilidade de recuperação de sua história de vida como forma de permitir que ela sentisse raiva de sua mãe, de sua tia, em suma, daqueles que a rejeitaram. A possibilidade de aceitar-se como o "patinho feio" foi um importante marco em seu processo, pois, permitiu que ela situasse a sua impotência dentro de sua história de vida, a qual havia sido completamente bloqueada.

T. reagia de modo violento toda vez que se sentia rejeitada. Aceitar a possibilidade de rejeição e de exclusão por parte do outro sem que isto venha a desestruturar a personalidade ou acarretar em uma resposta violenta afigurou-se, neste caso, como a criação de um campo de mediação em relação aos seus impulsos destrutivos.

Durante o período de férias, T. se mostrou resoluta em relação à necessidade de buscar um emprego. Pediu a Deus que lhe concedesse um. Chegando em São Paulo, T. foi à cooperativa que já a havia rejeitado enquanto empregada e explicou sua situação. Nesta ocasião, eles a aceitaram e T. passou a trabalhar em uma firma telefônica no departamento de cobranças. Este vínculo empregatício foi um divisor de águas no sentido da recuperação de sua auto-estima. T. foi capaz de planejar uma estratégia que adveio de seu poder criativo e de sua inventividade. Foi, inclusive, capaz de projetar um sentido de significação para sua vida, de plantar uma semente e de colher os resultados daquilo que plantou. A relação com seus filhos melhorou significativamente durante este processo e T. já não se sente tão dependente e submissa ao seu ex. marido.

III - AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA

May (1974) ressalta que o poder é essencial para o homem, pois possibilita a sua sobrevivência. Suas manifestações aparecem tão logo a criança nasce. O choro do bebê é uma manifestação de poder, uma vez que é assim que ela consegue saciar sua fome. Ele distingue cinco níveis de poder:
1. Poder de ser = o poder que existe já na criança recém nascida, visando satisfazer as necessidades básicas. É fundamental para o desenvolvimento da personalidade da criança. Não é bom nem mau. Tem que ser vivido, pois do contrário, a neurose, a psicose e a violência sobreviverão.
2. Auto-afirmação = o ser humano precisa viver com alguma auto-estima para poder se afirmar.
3. Auto-reconhecimento = é a forma mais forte de comportamento. É através do reconhecimento que a pessoa consegue perceber sua capacidade.
4. Agressividade = quando o auto-reconhecimento é bloqueado durante um certo período de tempo, esta forma mais enérgica de reação tende a aparecer e se desenvolver.
5. Violência = quando os esforços para liberar a agressividade se tornam ineficazes, surge a explosão, que é conhecida como violência.

Assim, o autor mostra que se as outras fases do comportamento são bloqueadas, a explosão de violência será a única forma pela qual os indivíduos podem se libertar de uma tensão intolerável e alcançar um sentido de significação.

A agressão e o poder têm a mesma origem, mas podemos considerar que a agressão é um mau uso do poder. A agressividade está sempre relacionada com a presença do social e do outro. É um movimento para fora, um impulso em direção à pessoa vista como adversária (May, p.109).

A agressão mantém uma relação com o objeto, uma vez que se sabe contra quem ou o quê a fúria se dirige. No caso da violência, essa relação com o objeto perde-se e a fúria atinge o que ou quem estiver mais próximo. Por isso, a pessoa golpeia cegamente, quase sempre destruindo os que lhe são caros e até a si mesmo. Perde-se a consciência do ambiente e o único objetivo é libertar o impulso da violência, independente das conseqüências que o ato possa ter. Aterroriza as pessoas, pois as coloca diante da possibilidade da própria morte, visto que é uma medida de forças: física, intelectual, emocional ou espiritual.

O caso de F. demonstra bem essa situação. F. é um homem de 29 anos, solteiro, que mora sozinho. Chegou à clínica queixando-se de ansiedade devido a alguns eventos traumáticos ocorridos em sua adolescência. F. referia-se à separação inesperada dos pais, à saída de casa repentina da mãe, à decepção de descobrir que a mãe fora morar com um amigo do pai, e diversos episódios de vandalismo e roubo.

Em sua vida social, F. não tem muitos amigos. Muitos estão presos ou mortos, os outros estão casados. Sente dificuldade em restabelecer sua rede social.

Em seu trabalho, sente-se em um ambiente hostil, isolado por ser um dos poucos heterossexuais do lugar. Não gosta do que faz e encontra-se perdido profissionalmente, sem saber como agir para modificar sua posição.

No aspecto amoroso, F. mostra-se distante das pessoas, como se os relacionamentos não fizessem sentido algum em sua vida, muitas vezes nem o de obter satisfação sexual. Encontra-se com garotas diferentes a cada dia, agindo sem refletir sobre suas escolhas, não sabendo quais as intenções e os objetivos de suas atitudes. Isto lhe acarreta alguns problemas com as mulheres e o prejudica emocionalmente ao ficar preocupado em inventar desculpas para não ser descoberto.

Ao mesmo tempo em que procura uma pessoa para estabelecer um compromisso mais sério, diante dessa possibilidade fica confuso e não consegue mantê-lo como gostaria.

No início dos atendimentos, F. relacionou a separação de seus pais, com o início da manifestação de suas atitudes mais rebeldes, de vandalismo na escola, roubou as chaves do órgão da igreja e tocou-o durante uma missa. Contou, também que, recentemente, entrara em uma briga para defender seu irmão.

Ao longo dos atendimentos, novos fatos demonstrando agressividade foram surgindo, como o incidente em que F. bateu no namorado da mãe e este precisou ficar internado no hospital.

No trabalho, não "engolia sapos", tirava satisfações de maneira agressiva a qualquer sinal de injustiça que percebia contra si.

Seus pensamentos eram agressivos, até o conteúdo de seus sonhos apresentavam cenas de violência. Sentia-se prejudicado e agia de maneira agressiva, seja evitando a convivência das pessoas com as quais sentia-se prejudicado, seja respondendo impulsivamente movido pelos sentimentos em questão.

A agressividade de F. que atingia suas vítimas claramente tornou-se violência, na medida em que essas atitudes voltaram-se contra o próprio paciente sem que ele percebesse. Mas, por que essa reação?

Para Rollo May (1974), a violência: "é a explosão do impulso de destruir aquilo que é interpretado como a barreira à auto-estima, ao movimento e crescimento individual. O desejo de destruir toma conta do indivíduo de forma tão avassaladora que qualquer objeto que se lhe anteponha será imediatamente destruído. Por isso, ele golpeia cegamente, quase sempre destruindo os que lhe são caros e até a si mesmo no processo." (p. 132)

Decepcionado com a vida que levava, frustrado em sua profissão, sentindo-se carente e abandonado pelos cuidados e carinho dos pais, F. voltou sua energia contra si mesmo, de maneira não menos irrefletida quanto eram suas atitudes. Usou drogas, escolheu experiências que colocaram sua vida em risco como roubar, ir para a cadeia, ter uma vida promíscua expondo-se a doenças fatais. A própria promiscuidade era uma arma apontada para si.

May (1974) salienta que a maneira como a pessoa interpreta o mundo à sua volta é fundamental para entender sua violência.

Na vida de F. não havia sentido para viver, não havia cor, não imaginava que fosse viver até os 30 anos. Experimentava o vazio existencial e estava deprimido. Mantinha aquela rotina para sentir alguma emoção A violência devolvia o risco e o desafio e assim sua vida deixava, momentaneamente, de ser vazia.

Em determinado momento da terapia, em que F. sentia-se deprimido, ele afirmou sentir saudade da sensação de estar controlando a situação.

Segundo May, ao contrário do que poderia se pensar, o oposto da agressão não é o amor, a paz ou a amizade, mas sim, o isolamento, o estado de nenhum contato.

Na tentativa de não ser agressivo, F. evitava a convivência com as pessoas, com as quais se sentia prejudicado, para evitar situações que pudesse perder o controle dos seus sentimentos.

O autor diz que para podermos progredir em nossos esforços para mitigar a violência, é preciso também olhar para o que ele chamou de êxtase, que são os elementos fascinantes, sedutores e atraentes pelos quais a violência nos atrai.

Ora, no caso de F., através de suas atitudes violentas, ele era completamente absorvido pelo reconhecimento do seu poder e pela satisfação de perceber a sua influência sobre as pessoas: de conquistá-las, ou repudiá-las conforme sua vontade. Esse era o êxtase que mantém os comportamentos violentos do paciente.

Durante os encontros com F., refletiu-se sobre suas atitudes, assim como as conseqüências e a responsabilidade de suas atitudes. Como elas o influenciavam e afetavam sua vida. Por que essa necessidade de sentir-se poderoso, de não conseguir admitir erros em sua vida? No processo terapêutico, F. está buscando transformar seus comportamentos, ao pensar sobre seus sentimentos e ao agir de uma maneira que lhe traga mais benefícios do que prejuízos.

É importante lembrar que tanto a agressão quanto a violência não são apenas destrutivas. As formas construtivas de agressão são: a superação de barreiras para iniciar uma relação, a confrontação sem intenção de ferir, a superação de obstáculos à cura. Apesar de construtiva, essa forma de agressão também provoca sofrimento e conflitos interiores.

A agressividade é parte da herança humana e, ao mesmo tempo, é formada culturalmente. O caso da paciente A. pode ilustrar essa situação.

A. tem 23 anos e é solteira. Chegou à clínica queixando-se de problemas de relacionamento, segundo ela, gerados por sua falta de paciência e sua agressividade.

A. não tem muitos amigos. Mora nos fundos da casa do pai, que é alcoólatra, e com quem ela não se relaciona muito bem. Tem pouco contato com o irmão e a irmã, que são casados. Sustenta a casa praticamente sozinha (o pai e o irmão não ajudam muito).

Atualmente, A. é manicure, mas já trabalhou em várias áreas. Ela tem dificuldade em se fixar nos empregos por onde passa, já tendo atingido a média de quatro tentativas em um mês e meio. Geralmente, ela pede demissão impulsivamente, mas não se arrepende, embora se sinta mal por não conseguir criar raízes.

No aspecto amoroso, apresenta dificuldade em se comprometer. Namora há um ano, mas não se entrega emocionalmente, apesar de gostar do namorado. Prefere manter uma certa distância, com medo de que se repita o que ocorreu com o ex-noivo. Ela era muito dependente dele e tinha muito ciúme. As brigas eram freqüentes. Quando ele terminou o noivado, ela ficou muito deprimida. Chegou a tomar nove comprimidos de Gardenal, com o objetivo de dormir um fim de semana inteiro, e entrou em coma. Hoje, fala que o amor é humilhante. Que é muito ruim uma pessoa ser dependente da outra e evita até falar "eu te amo".

Durante as sessões, a paciente relatou freqüentemente episódios agressivos: certa vez, ela jogou copos d'água e bateu em um vendedor no shopping, quando ele pediu que ela entrasse na fila. Outro dia, na fila de um restaurante por quilo, passou na frente de um senhor. Quando ele reclamou, ela quebrou um prato na cabeça dele, pois se sentiu ofendida.

Isso demonstra que violência e comunicação se excluem. A violência remete, geralmente, ao uso de força física contra algo ou alguém. Essa força qualifica-se como violência segundo normas definidas histórica ou culturalmente (Marin, p. 69).

Muitas vezes, principalmente quando interpreta estar sendo maltratada, A. tem vontade de "quebrar tudo" e partir para a briga. Acha que sua agressividade é inata, e tem muito medo de ser agressiva como a mãe. Teve sintomas físicos, algumas vezes, em que ficou muito nervosa como dor no peito e formigamento.

Em vários momentos, A. disse se achar uma pessoa "má", devido a sua agressividade. Ao mesmo tempo, ela relaciona seus problemas à sua infância, que foi muito difícil.

Quando criança, A. foi molestada sexualmente por um tio. Sua mãe era muito nervosa e agressiva. Batia no marido e nos filhos, deixando-os de castigo freqüentemente. Brigava com os vizinhos, colegas ou parentes, brigas graves, que envolviam armas. Sua mãe foi assassinada a tiros na festa do seu aniversário de oito anos, por um vizinho. O primo e o irmão também foram baleados.

Depois da morte da mãe, A. e sua irmã ficaram em um orfanato. Elas brigavam muito com as outras crianças e acabaram sendo expulsas. Quando voltaram para casa, não havia ninguém para tomar conta delas. Ela ia quase todo dia ao cemitério.

Aos 15 anos, ela morou durante seis meses em um abrigo, pois o conselho tutelar foi acionado pela escola em uma das vezes em que seu irmão a espancou.

A confiança do valor individual normalmente é obtida através das atitudes da mãe em relação à criança e em seguida cultivada na família pela lealdade com a criança. É possível relacionar a agressividade da paciente com a escassez de amor e carinho da sua infância, além dos exemplos constantes de situações agressivas. Mais tarde, o adulto mantém imagens de pessoas que acreditaram nele na infância, como ponto de referência nos momentos difíceis, modelos que parecem ausentes na vida da paciente.

Durante o processo terapêutico, refletiu-se com a paciente sobre os motivos e as conseqüências de seus atos agressivos e de sua impulsividade.

Para May, há a agressão quando existe um conflito explícito e o ato agressivo aparece no intuito de solucionar este conflito. Se esse conflito não está explícito, surge a violência, isto é, se uma pessoa se sente impotente diante de algo que ameaça sua auto-estima e seu crescimento individual, ela é tomada por uma necessidade incontrolável de destruir aquilo que ela percebe como sendo a barreira para seu desenvolvimento pleno. É essa explosão incontrolável que é chamada violência e só pode ser controlada através de reflexão acerca desses atos. Devido à íntima relação existente entre os significados das palavras agressão e violência, freqüentemente elas são entendidas, equivocadamente, como sinônimos.

Segundo o autor , a violência também pode ser descrita em cinco tipos:
1. Violência Simples = através dela atinge-se uma liberdade muscular, uma liberação das restrições da consciência individual e da responsabilidade sobre os atos. É um protesto genérico contra uma situação de impotência.
2. Violência Calculada = surge a partir da manipulação da frustração de outrem com o intuito de incentivar a violência em prol de algum fim.
3. Violência Fomentada = é um estímulo da impotência e da frustração sentidas pela população em benefício de um orador.
4. Violência Instrumental = é uma violência incentivada tão sutilmente, de modo que seus próprios sujeitos isentam-se da responsabilidade não se conscientizando de tal ato.
5. Violência "vinda de cima" = com a função de proteger o status quo, o partido no poder, ameaçado de diminuição desse poder, arma-se de violência contra quem deveria proteger.

Como na agressividade, a violência pode ter um caráter destrutivo e um construtivo. A violência pode ser destrutiva quando atinge outras pessoas envolvidas na situação, independente dos motivos ou conseqüências do ato do agressor.

Já a violência construtiva surge para aclarar alguma relação psicológica que não está sendo saudável, como por exemplo, o ato de quebrar algum objeto quando não se consegue demonstrar a insatisfação de outra maneira. Assim, a violência também permite que a pessoa entre em contacto com seu conflito, propiciando um conhecimento maior de seus sentimentos e emoções.

IV - REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
May, Rollo. Poder e Inocência. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
Marin, Isabel da Silva Kahn. Violências - São Paulo: Escuta/Fapesp, 2002.