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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


13. A Vivência da Vergonha no Vínculo Transferencial

"A última palavra será a quarta dimensão.
Cumprimento: ela falando
Largura: atrás do pensamento
Profundidade: eu falando dela, dos fatos e sentimentos e de seu atrás do pensamento
Eu tenho que ser legível quase no escuro"

A relação transferencial ainda é um tema pouco valorizado entre os junguianos. Sem dúvida assim como Jung, outros grandes teóricos escreveram sobre o tema, porém este ainda parece ser um lugar de muito questionamento. Falar sobre transferência e contratransferência é nos colocar como humanos dentro do processo analítico e portanto, a percepção de quem somos torna-se aqui fundamental. Todo processo de análise visa ajudar o paciente na compreensão de aspectos seus que ainda não foram conscientizados, tornando-os assim, parte da consciência. Para isso o analista deve a todo instante saber o que é seu e o que é do paciente, sem esquecer que além de cada um ser uma unidade em si, o encontro revela uma outra unidade na qual paciente e analista não se comunicam apenas de forma consciente.

Diante desses aspectos, a decisão de falar sobre essa relação com uma interface na vivência da vergonha da paciente se deu. Mas porque a vergonha? Creio que isso ficará mais claro a partir do momento em que os leitores passem a conhecer alguns aspectos do caso, mas antes disso devo dizer que a vergonha aparece como aspecto a ser interpretado e também superado para que a paciente passe a lidar com questões difíceis de sua vida, ou seja, a vergonha pode ser trabalhada como via criativa dentro do processo de análise. Além disso, a vergonha de falar sobre si mesma, também revela parte importante do processo de análise que eu definiria como tempo. O tempo aqui é cada vez mais percebido como algo que mostra dimensões do atendimento e do aprofundamento das questões da paciente e principalmente, revela desde o seu início o difícil processo de encontro com a sombra.

TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA:

O ENCONTRO ANALÍTICO COMO LUGAR DE TRANSFORMAÇÃO

Para Jung a transferência acontece em todos os relacionamentos humanos e é definida com tal, para diferenciar a projeção que acontece dentro do encontro analítico, já que qualquer relação possui aspectos projetivos. O conceito de projeção "na psicologia analítica junguiana indica o processo psicológico de estranhamento segundo o qual o sujeito - na relação que mantém com um objeto - transfere e inclui no próprio objeto qualquer gênero de conteúdos que sejam fundamentalmente de sua pertinência" , ou seja, trata-se de quando o indivíduo coloca no outro qualquer conteúdo da sua própria realidade psíquica. É importante ressaltar, que como já dissemos anteriormente a relação entre paciente e analista não é apenas consciente, mas também inconsciente. O ego de cada um se relaciona entre si, mas também com o inconsciente do outro. E, além, os inconscientes também se relacionam entre si.

Assim como o paciente projeta conteúdos no analista, o contrário também pode acontecer, neste caso, denominamos a relação como sendo de contratransferência. Portanto, é fundamental que o analista tenha consciência de suas questões, de seus complexos para que não projete no paciente conteúdos que são seus, o que o impedirá de construir um encontro com o outro que seja transformador. No entanto, ter consciência desse fato não é negá-lo tendo em vista a tão sonhada imparcialidade almejada pela psicanálise freudiana, mas sim perceber que somos afetados pelas pessoas que atendemos e que essa dinâmica e seus conteúdos devem estar o mais consciente possíveis e podem colaborar no processo de análise.

O mais importante é compreender que paciente e analista possuem conteúdos inconscientes que a todo momento estão em contato um com o outro e que interagem de forma a aparecer não só as fantasias e expectativas do paciente, como também do analista. Trata-se de dinâmicas não exclusivamente complementares, mas principalmente papéis que interagem tendo em vista o processo de cura da paciente. É nesse sentido que as polaridades se fazem presente, como possibilidades de compreensão da totalidade do indivíduo. Daí a importante tarefa de questionamento do lugar onde o analista está e o que sente.

Jacoby elucida:

"Lembramo-nos do modelo de Jung sobre a inter-relação dialética entre os parceiros, quando Racker enfatiza que na situação analítica duas pessoas estão envolvidas - cada uma com uma parte neurótica e uma parte saudável, um passado e um presente, e uma relação com fantasia e realidade. Ambos são, ao mesmo tempo, um adulto e uma criança, sendo seus sentimentos com relação ao outro o de uma criança para com os pais e os dos pais para com as crianças".

É através dessa relação dialética que a psicoterapia acontece, uma vez que é nessa dinâmica que o processo de ampliação da consciência e de conseqüente transformação ocorrem.

A RELAÇÃO TRANSFERENCIAL E A FUNÇÃO MATERNA

O presente trabalho visa perceber e compreender como a vivência da vergonha interfere na relação transferêncial. Para isso é necessário compreender a dinâmica central da relação analista - paciente, compreender qual o conteúdo da projeção de cada um sobre o outro, sem esquecer que cada indivíduo possui sua própria persona, ou seja, sua máscara ou papel que define sua maneira de se expressar e agir no mundo.

No caso de Maria a relação com a figura materna é fundamental; portanto, elucidarei aqui alguns dados da história da paciente referentes a este tema.

Durante o primeiro ano de atendimento a mãe de Maria falece. Essa mãe é descrita por ela como alguém que não a ensinou a dar carinho, pois em nenhum momento fez isso com os filhos. Em outro momento do processo a relação com sua mãe aparece vinculada à vergonha que Maria sente. Quando questionada sobre a vergonha Maria retorna a falar sobre sua mãe, evidenciando que sua relação com ela é muito conflituada. Ela relata situações nas quais a mãe punia os filhos por qualquer coisa e acrescentava sempre que eles não podiam agir de determinada forma, pois era pecado. Se alguém perguntava o que tinha acontecido a mãe fazia os filhos falarem que tinham errado e que mereciam o castigo. Assim, creio que grande parte da dificuldade de Maria se sentir adequada, e a grande vergonha que sente parecem ter vínculo forte com a relação vivenciada com sua mãe. É fundamental ressaltar que Maria não pode colocar sua mãe no mesmo patamar que ela, como se sua mãe fosse detentora de um poder que não pode ser questionado, conseqüentemente trata-se de uma relação desigual, na qual a idéia que Maria tem da mãe ainda a impede de mostrar-se independente e com uma estrutura egóica que pode agüentar as frustrações e as carências vinculadas à figura materna.

Ela não se permite ter sentimentos "negativos" em relação à mãe, pois ela ainda pensa que sentimentos como raiva e ódio não podem existir paralelamente a sentimentos como o de amor. Se você ama determinada pessoa, não pode sentir ódio dela. Além disso, sentir ódio e/ou mágoa parecem ser pecado. A todo momento Maria acrescenta que a mãe fez isso, mas que ela também não teve uma infância fácil, justificando assim o comportamento da mãe. Trata-se portanto, de uma relação na qual persona, sombra e ego se comunicam de maneira pouco consciente. Essa sombra parece irromper de dentro da paciente, mobilizando a forma de estar de Maria no mundo o que configura o complexo materno. O complexo é parte inerente da psique humana e, assim sendo, refere-se a um arquétipo, ou seja, a um conteúdo que existe universalmente tanto no inconsciente coletivo, como no inconsciente individual. Sendo assim, todos possuem um símbolo materno internalizado.

Você deve estar se perguntando: mas todos temos o complexo materno? Vale ressaltar que todos os seres humanos constelam o complexo materno, uma vez que é típico do humano a vivência existencial com o arquétipo da grande mãe. Em nós humanos, seres essencialmente mamíferos, o complexo materno se constela bastante precocemente pois temos uma relação com o âmbito materno visceral e anterior até à formação do complexo egóico. Isso não significa que o complexo materno necessariamente vá se constituir de experiências negativas ou dolorosas, embora isso também seja muito comum. O alto valor simbólico que as questões ligadas ao complexo materno tem tende a torná-lo bastante poderoso e assim ter um peso grande em relação ao ego. Por outro lado as vivencias relativas ao arquétipo da grande mãe estão constantemente sendo reeditadas em nossas vidas e dessa forma podem acentuar o complexo ou dar oportunidade de (re)significar e elaborar esse complexo.

O caso de Maria, vai de encontro a essa diretriz, já que a relação construída no espaço terapêutico possibilita o encontro criativo com a constelação do complexo materno, ou seja, a possibilidade de Maria vivenciar essa relação dentro do espaço clínico, comigo, não é apenas a repetição de fatos vividos por ela em sua infância, além, tem como finalidade a construção da transformação. Isso, pois o encontro analítico tem como objetivo o constante processo de individuação da paciente, através de re-significações e ampliações do campo da consciência.

A presença desse complexo pode ser percebida já que os indivíduos expressam inconscientemente "uma estrutura psíquica mínima dotada justamente de forte carga afetiva, que liga entre si representações, pensamentos e lembranças". Jung relata: "uma só palavra, um só gesto pode atingir a ferida e evidenciar o complexo à espreita no fundo da alma" . Sendo assim, o complexo materno se constela ao redor do arquétipo materno, evidenciando conteúdos inconscientes que devem ser compreendidos passando a fazer parte da consciência para que o indivíduo prossiga no seu caminho através do auto-conhecimento.

No caso de Maria o complexo materno aparece em diversos momentos do processo terapêutico e além disso, conteúdos do mesmo configuram parte importante da relação transferêncial. O significado dessa dinâmica se evidencia quando conteúdos do complexo materno de Maria passam a se projetar em mim. Ao mesmo tempo, eu também tenho um lado feminino-materno que estão presentes não apenas na relação com ela, mas com diversas pessoas. Conseqüentemente podemos dizer que uma determinada dinâmica transferêncial passa a caracterizar a relação paciente - analista.

Para essa caracterização ficar mais clara, ou seja, para vocês perceberem como a figura da analista fica imbuída de uma função materna, elucidarei momentos no processo de análise nos quais minha relação com a paciente fica em evidência.

No meio do processo de análise Maria fala no final de uma sessão que está com uma dúvida e logo coloca: "Como eu devo te chamar? Eu te chamo de Mariana, de você ou de doutora?" Digo a ela que não tenho preferência e que ela pode me chamar como quiser. A questão perdura durante um tempo e Maria relata que realmente não sabe como é melhor, já que conversou com algumas colegas que também fazem terapia e algumas delas disseram que tratam sua analista como doutora. No final ela decide continuar a me chamar por você ou de Mariana, afirmando que acredita não ter problema me chamar dessa maneira. Fica difícil conversar um pouco mais sobre essa questão já que quando eu perguntei a ela sobre porque essa questão tinha surgido Maria novamente não sabia o que responder e afirmava que era só para saber e nada demais. Qualquer assunto é difícil de ser aprofundado e além, Maria parece ainda não ter estrutura para conversar sobre esse assunto, assim como não consegue se aprofundar nos aspectos mais importantes de sua vida.

Logo percebi que falar da nossa relação não seria nada fácil, mas que esse assunto apareceria e teria que ser tratado. Uma questão ficou: qual o lugar em que Maria me coloca? Parece que para ela ainda não está claro o meu papel de analista e ao mesmo tempo sinto que essa questão traz um pouco da dificuldade dela ter uma relação mais próxima comigo. Ao colocar essa questão Maria traz à tona a dificuldade de se aproximar de mim, revelando a ambivalência entre se aproximar e se distanciar, deixando na minha mão a definição da nossa relação. Creio que essa impossibilidade de se apropriar do seu desejo de aproximação também se relaciona com a dificuldade de lidar com a frustração que uma relação definida acarreta. Ela ter claro o meu papel, mostrará a ela que nossa relação pode ser mais íntima, mas também tem limites o que pode frustrá-la em alguns momentos. Maria tem dificuldade em manter relações justamente por não aceitar que as pessoas não agem exclusivamente de acordo com as suas expectativas e quando esse desapontamento acontece Maria sempre opta pelo rompimento da relação (foi assim com algumas amigas, por exemplo). Fica então caracterizado o conflito entre se distanciar ou se aproximar.

Maria mostra sentir vergonha de me contar alguma coisa, pois declara em algumas sessões que existem coisas que não sabe se irá me contar um dia. Não parece ser falta de confiança, mas sim vergonha, afinal nesses momentos sua postura e risadas soam como um comportamento ligado a esse sentimento.

Num segundo momento Maria vem para a sessão, se senta e logo no início fala: "Parece que estou vindo para a forca". De início devo admitir que fiquei um pouco assustada, pensando em que parte minha foi complementar a uma dinâmica dela. Fiquei em silêncio um minuto digerindo a questão que martelava em minha mente: "Como pude deixar que isso acontecesse?". Falo então que acho que é importante conversarmos sobre a nossa relação para entendermos porque ela se sente desta maneira. Maria diz que às vezes é difícil responder as perguntas que faço, que ela às vezes não sabe as respostas. Digo para ela que aqui nem sempre vamos ter respostas, mas que as conversas que temos são sobre coisas difíceis. Eu pergunto se ela acha que por eu ser uma psicóloga e ela manicure eu sei mais sobre ela. Ela fica parada e calada me olhando. Não responde. Eu fico parada também por um tempo. Digo para ela que com certeza ela sabe mais sobre ela do que eu. Ela fica pensativa. Depois de algum tempo ela começa a falar que está precisando de um homem, de uma luz na vida dela, precisa de um namorado. Conta que sonhou que olhava do chão, no outro lado da rua um casal fazendo sexo em cima do telhado de uma casa e sua mãe vendo. No sonho ela se perguntava porque a mãe estava vendo. Pergunto o que sentiu e ela não sabe responder e não consegue fazer nenhuma associação.

Essa seqüência traz novamente as questões com o complexo materno evidenciadas na relação transferencial. A vergonha relacionada ao complexo materno é vivida na relação comigo. Logo em seguida quando Maria traz a vontade de ter um companheiro e o sonho o masculino aparece. Ou seja, esses conteúdos dizem sobre sua necessidade e dificuldade de relacionamento com o masculino e com o dinamismo de alteridade. Podemos dizer que para alcançar ou se aproximar do masculino na forma da alteridade o caminho passa necessariamente pela vergonha e pelo complexo materno.

Nesse período nos aproximamos de uma questão que parece ser muito importante para o processo terapêutico de Maria. Obviamente algumas dinâmicas dela com o mundo se reproduzem dentro do espaço clínico, evidenciando a importância de nesse momento eu ter ainda mais clareza da relação transferêncial, já que este parece ser um assunto no qual iremos nos aprofundar. Aqui, começo a pensar ainda mais em quais são as minhas expectativas em relação a Maria, até que ponto eu acho que ela está "acertando ou errando", como ela receia que aconteça com ela na faculdade, por exemplo. É importante considerar, que eu também faço parte da PUC, já que atendo na clínica dessa instituição. Logo após a primeira sessão na qual tocamos no assunto sobre como é a nossa relação lembrei de um sonho que ela teve no início do processo terapêutico. No sonho uma menina não conseguia se controlar e fazia cocô na calça. A dificuldade de colocar para fora algumas coisas, faz com que muitas vezes Maria perca o controle e com isso sinta-se inadequada e envergonhada. O sonho parece mostrar uma falta de adequação, como se a lei da dinâmica patriarcal ainda não tivesse se estabelecido. Maria parece estar ainda numa dinâmica matriarcal, na qual a simbiose com a mãe e a indiscriminação são características clássicas. Sem dúvida, esse processo é experienciado também na relação comigo. Começo a perceber que minhas questões acerca de como ela se sente não podem ser respondidas, pois Maria não consegue discriminar seus sentimentos. É como se ela precisasse viver comigo a relação com o materno que é símbolo de continência, cuidado e acolhimento. Nesse contexto começamos a nos aprofundar na relação transferêncial.

A outra grande dificuldade dela em relação a mim, é nos colocar em patamares diferentes, por eu ser detentora de um saber que ela não tem. Esse sentimento de inferioridade que sente em relação ao mundo, aparece agora em relação a mim. Ao mesmo tempo, pela primeira vez, vivenciei uma sessão com ela sem muitas expectativas. Apesar de racionalmente compreender que para alguns pacientes é necessário ficar um tempo considerável na "superfície" (não entenda aqui superfície como uma desvalorização dos conteúdos relatados por ela, mas sim como uma criança que precisava de cuidados. Trata-se portanto, da percepção da possibilidade que ela tem de falar sobre algo) para que depois eles possam se aprofundar, minha vivência com ela era outra. Eu imprimia com minhas perguntas uma profundidade ainda impossível para ela de ser compreendida. Maria foi minha primeira paciente e de alguma maneira minha idealização do que era um processo terapêutico ía de encontro com uma profundidade que eu considerava fundamental para a evolução de um paciente. Ledo engano. Aqui verifica-se a importância de se ter calma e de compreender que em muitos momentos teremos que falar diversas vezes a mesma coisa para que um dia o paciente perceba o sentido do que estamos dizendo, afinal o desenvolvimento do processo analítico se dá no tempo da paciente e não no da nossa expectativa. A vivência da ansiedade em relação ao processo de Maria evidenciava a constelação da "sombra inconsciente do paciente e da consciência do ego do terapeuta" . Esse mesmo autor acrescenta: "O espaço da terapia torna-se a arena internacional de um mundo ou drama interior do paciente que, de outra forma, permaneceria oculto", fato este que eu não poderia deixar acontecer, afinal seria anti-ético permitir tamanha indiferenciação, já que o processo analítico visa a aquisição de consciência e a individuação.

Nesse período percebi, na própria experiência o tempo de Maria e finalmente comecei a valorizar mais profundamente o que era trazido por ela. Era possível para mim começar a entender e a ouvir o que foi dito e o que está por trás da fala o que colaborou para eu me relacionar com a paciente respeitando sua alteridade. Maria fica um tempo se mostrando pouco à vontade, novamente trata-se de uma postura que não parece acontecer apenas no espaço terapêutico. A sensação é de que o sentimento de inadequação dela é enorme, como se ela nunca pudesse agir da maneira que considera ser a certa. A relação transferêncial fica cada vez mais em evidência: saber o que ela projeta em mim é extremante relevante e também perceber onde o meu comportamento pode ser complementar a uma dinâmica da paciente, uma dinâmica na qual o sentimento de ser inadequada e inferior é sempre expresso. Será, que assim como a mãe dela era um general ela também me via como tal? Como aquela que a deixa encolhida como uma criança indefesa? Em sendo uma fantasia ou sentimento contratransferencial meu, diante disso devo também me perguntar em que medida a paciente precisa que a analista fique nesse lugar (general) e desempenhe o papel de quem vigia e pune para que ela fique no lugar habitual da criança indefesa.

Minha postura fazia com que ela ficasse de fato desesperada por não conseguir compreender coisas que vivenciada, ao mesmo tempo fui notando a importância de ter que ser um pouco mais firme (ato difícil para mim, já que tendo a ser mais carinhosa/maternal). Essa firmeza era fundamental para fornecer o limite/patriarcal, já que em muitos momentos Maria agia como uma criança "birrenta" (termo que ela mesma utiliza em uma das sessões). Meu comportamento teria então que mudar, já que da forma como agia anteriormente eu sempre iria parar na defesa dela. Incluo nessa defesa a vergonha, já que essa parece ser ao mesmo tempo uma defesa do ego e uma expressão da sombra. Portanto, o que Maria precisava era da colocação de limite de forma normal, que fosse punitiva como a exercida pela mãe, mas que expressasse um novo símbolo de cuidado. Em alguns momentos impor o limite daria a oportunidade de colocar Maria numa posição não defensiva e também menos passiva, para começar a ajudá-la a encarar algumas coisas, aceitando-as, mesmo que ainda ela não tenha respostas para muitas delas. Nós psicólogos sabemos que parte do movimento de individuação não é só pautado em respostas, mas também em superações.

Alguns aspectos não só da transferência como da contratransferência passam a ficar mais claros. Maria projetava em mim, uma mãe que a julgaria como pecadora e a puniria. Minha postura como analista era não mais coloca-lá sempre num lugar no qual respostas que eu considerava adequadas deveriam ser dadas. Era necessário, rever o meu lugar para valorizar aquilo que a paciente trazia e, ao mesmo tempo, era preciso mostrar a paciente que nem todos irão puni-la ou agredi-la caso ela não seja o que desejamos. Como eu poderia querer que Maria encontrasse a pérola, algo com valor e belo dentro de si, se eu não permitia que ela fosse verdadeiramente ela? Além disso, eu vivi uma experiência como paciente na qual a transferência era positiva, o que para mim dificultava mais a percepção da situação, afinal ela era a minha primeira paciente e queiramos ou não nossa própria analista é sempre um modelo para nós.

Diante disso, a busca pela teoria fez-se necessária. Compreender não só através dos sentimentos, mas também da razão era fundamental. Finalmente agora eu poderia interpretar o que estava acontecendo e entender o que era essa vergonha que aparecia de forma tão incessante na vida de Maria.

Jacoby (1998), coloca em seu livro "O Encontro Analítico", que existe algumas formas de distinguir a contratransferência, mas aqui me aprofundarei em dois tipos de contratransferência que se agrupam no que Racker denominou de contratransferência adequada, que se diferencia da contratransferência neurótica. Nesta última as projeções inconscientes do analista em relação ao paciente são fortes.

Já a contratransferência adequada se divide em concordante e complementar. A contratransferência concordante acontece quando o terapeuta percebe a possibilidade de agir com total naturalidade e espontaneidade com o paciente. O que revela uma flexibilidade da figura do analista que permite a construção de uma relação empática com o paciente. É muito importante sermos cautelosos nesse tipo de contratransferência já que podemos captar melhor o que o paciente pensa e sente e isso pode ser muitas vezes considerado como invasivo.

Jacoby acrescenta que nesse tipo de contratransferência é como se pudéssemos "ver através" do paciente. Isso me remete ao momento da análise de Maria no qual ela achava que por eu ser detentora de um saber psicológico eu sabia mais dela do que ela própria, ou em outros momentos quando ela disse que às vezes ficava assustada porque eu olhava em seu olho e perguntava coisas para as quais ela realmente não tinha resposta.

A contratransferência complementar acontece quando paciente e analista projetam papéis complementares. Por exemplo: a paciente pode projetar na analista sua mãe e a analista pode colocar a paciente no papel de filha, caso este que também ocorre no caso de Maria comigo. A contratransferência é complementar quando "o sentimento do analista poderá ser uma reação ao estado interno do paciente" . Portanto, fica claro aqui que nem sempre vivenciamos apenas um tipo de contratransferência, pois paciente e analista não são objetos, ou seja, estamos falando de pessoas e suas nuances através das quais diferentes contatos e dinâmicas são estabelecidas. Isso acontece, pois como já dissemos anteriormente uma dinâmica dialética é estabelecida na relação analista/analisando.

Parece que a importante ação minha como analista em relação à paciente era de não permitir que a minha contratransferência se tornasse neurótica ou ilusiva. Para tanto foi fundamental questionar a todo momento o meu papel e não permitir que eu me tornasse a mãe extremamente autoritária e agressiva que ela tinha e nem tentar ser uma mãe completamente continente e permissiva para a qual ela não tinha canal de persona para se relacionar.

Assim, a menina ferida (Maria), aparece ainda num estágio de desenvolvimento primordial no qual a vontade de ter uma relação de completude com a mãe não foi saciada. Portanto, a minha contratransferência não era apenas fruto do meu desejo, mas também do desejo da paciente. Ela ainda vive num estágio de transição do período matriarcal para o patriarcal e em decorrência disso a simbiose permeia suas relações e revela a dificuldade de atuar no mundo com responsabilidade e compreendendo que os outros não são apenas fruto das nossa vontades e expectativas.

"A ferida que a criança guarda da criação inadequada que lhe deram os pais persiste na vida adulta sob a forma de baixa auto-estima e relação instável com a feminilidade e consigo mesma como mulher."

A relação transferencial repete a dinâmica da descrita acima e traz o papel materno seu importante reconhecimento e a conseqüente transformação dessa função materna. O contato de Maria com o feminino mais acolhedor, propiciará a compreensão e a integração de uma feminilidade que foi reprimida e desprezada. Uma feminilidade que além do carinho, também inclui o desenvolvimento da sexualidade. Essa sexualidade não precisa ser ignorada através da vergonha já que a paciente poderá perceber que o mundo não é dividido entre Bem e Mal, como sendo forças superiores e supremas. Daí então é possível construir o encontro com o lado masculino e com o mundo patriarcal, superando a construção de que vivenciar algumas coisas seja pecado.

Nesse contexto a vergonha aparece e caracteriza a dinâmica da paciente em relação ao mundo e a mim. A vergonha é a maneira de entrar em contato e/ou de se defender de conteúdos difíceis de serem integrados. A vergonha revela a dificuldade e o caminho de contato com o inconsciente. A vergonha traz valores rígidos de uma mãe com um lado masculino exacerbado e autoritário. Ou seja, a paciente assimilou ao ego valores muito rígidos e regras tão rigorosas que se sente incapaz de atendê-las. Por um lado há uma idealização dos valores e regras o que inclui uma idealização das figuras parentais detentoras desses valores e regras. Por outro lado há uma noção de si mesma como errada, incapaz de atingir os valores acima colocados. O sentimento de inferioridade aliado ao sentimento de desamor e fraca estruturação da segurança básica , como já foi discutido em relação à figura materna, fazem com que a paciente se sinta aquém das expectativas dos outros e aí inclui-se também a mim como analista, mas também há forte sentimento de inadequação. A vergonha surge do entrelaçamento de todos esses aspectos, mas não podemos esquecer o sonho em que ela faz cocô na calça, isso aponta para sua inadequação. É importante ressaltar que ao contar o sonho ela não se refere a vergonha.

Portanto, a vergonha relaciona vários aspectos da vida concreta e psíquica de Maria. Elucidaremos esses aspectos no item a seguir, compreendendo que a vergonha será a polaridade de três pares dicotômicos fundamentais. São eles: vergonha/culpa, vergonha/confissão e vergonha/perdão.

A REVELAÇÃO DO SEGREDO: A VERGONHA COMO CAMINHO CRIATIVO

Maria teve uma educação muito severa. Valores religiosos típicos do catolicismo conservador eram colocados como regras intransponíveis, ou seja, barreiras que não colaboravam no processo de desenvolvimento espiritual do ser humano. Nessa diretriz, comportamentos tidos como errados eram punidos de maneira autoritária, não sendo imbuídos de sentido. Características essas que não eram apenas da mãe de Maria como também do tempo e do mundo patriarcal no qual vivemos. Whitmont, 1991, descreve o racionalismo do mundo patriarcal como variável que impossibilitou um "contato consciente com o divino". Portanto, a mãe com um lado masculino desenvolvido, é também símbolo de um mundo patriarcal internalizado de forma negativa, justamente por ser intrínseco a ela um masculino autoritário e agressivo. A educação de Maria também era pautada nesses valores da coletividade do ciclo patriarcal no qual ainda vivemos. Esses valores sempre foram introjetados de forma dogmática como produtos finais, impassíveis de modificação.

No caso de Maria fica claro a importância da superação do complexo materno para que ela possa se aproximar do masculino de forma que as polaridades intrínsecas deste não sejam vividas de maneira cindida. Vale lembrar que neste período novas características e valores virão à tona para que o indivíduo construa uma outra relação entre ele e o outro, ou seja, o eu e o outro agora passam a se diferenciar. Maria não apenas precisa fazer essa transição, como também deve ter esse contato com a energia masculina através da alteridade e não apenas vivenciando um masculino radical como ela relata que sua mãe fez. De certa maneira, a vergonha passa a ser parte importante nesse caminho, já que está intimamente vinculada com o complexo materno.

É nessa diretriz que o olhar para a vergonha se deu. Dando sentido ao sentimento de humilhação tão forte para Maria. É preciso ajudá-la a estar diante do que fez ou sente compreendendo o lugar de onde a paciente veio e como ela se encontra, para que então Maria possa ter controle sobre o que faz, tendo consciência do que é.

Reiteramos que a vergonha está intimamente relacionada com conteúdos que se vinculam a valores religiosos e sexuais introjetados. A religião era vivida por ela na infância como regras que não permitiam que ela entrasse em contato consigo mesma, mas que apenas a impediam de agir no mundo. Assim Maria vivenciou uma repressão que deu origem a vergonha e a sentimentos de inadequação. O que ela pensa ou fantasia não poderia ser jamais concretizado ou compreendido como possibilidades saudáveis (não necessariamente concretas, mas do campo da fantasia) do ser humano e só dizem respeito ao quanto ela é pior, mais burra e feia do que os outros. Wiedemann ressalta:

"Ela se sente desvalorizada e marginalizada; ela não tem confiança; se vê como gorda, burra, incapaz de expressar-se; ela não consegue viver uma vida autêntica. O masculino negativo dedica-se a criticá-la: diz-lhe que ela é velha, mal amada, pouco criativa e inútil o que a impede de confiar em seu próprio valor".

Lembro aqui quando ela relata ter escutado o padre Marcelo no rádio. Num dado momento ele dizia para as pessoas se sentirem acolhidas por Jesus e que poderiam para isso se imaginar sentados no colo do mesmo. Maria então fala que ficou pensando como seria "sentar naquilo de Jesus". Diz isso extremante envergonhada e eu tento conversar com ela sobre o que ela sente quando pensa nessa cena, porém ela não consegue se aprofundar. A tentativa de conversar sobre o que é proibido é ineficaz ainda nesse momento da análise, porém verifica-se que apenas o ato de fantasiar já é vivido como pecado. Símbolos da religiosidade e da sexualidade se misturam dando cores diferentes ao atendimento. O que é do campo do sagrado e o que é do campo do profano? Maria ainda parece viver essa coisas de forma bastante dissociada, como polaridades que ainda não dizem respeito a uma unidade.

A vergonha se entrelaça nesse momento com uma culpa (não só vinculada a fantasia, pois esse momento foi um exemplo) pelo que não deve ser feito e também por não conseguir agir de outra maneira. Isto é, Maria acredita que suas fantasias e algumas ações são inadequadas, porém ainda não enxerga uma outra possibilidade de ser. É como se ela fosse apenas essa pessoa inadequada e que não age corretamente. Assim, conviver com a vergonha é o primeiro passo. É estar próxima da culpa e de conteúdos inconscientes ainda tão difíceis de serem explorados. O primeiro momento da análise de Maria evidencia esse processo já que ela passou muito tempo sem conseguir permanecer até o final da sessão e mesmo quando o fazia, não conseguia falar, ficava em silêncio e se sentia incomodada. Construir com Maria a possibilidade de ficar na sessão era de certa forma, fornecer "a base inicial do acalentar, alimentar, espelhar, aceitar e refletir-lhe de volta a sua identidade".

Fica claro que a vergonha é o caminho da paciente. A vergonha é a forma que Maria encontrou de viver os seus sentimentos com profundidade, expressando a existência de crítica diante de seus atos. Portanto, algumas dessas vivências são conteúdos conscientes e revelam a dinâmica entre ego e sombra da paciente.

Sem dúvida existe um vínculo forte entre a vergonha e a imagem que Maria tem de si mesma (persona), uma imagem de inadequação e incapacidade. A vergonha pode ser uma possibilidade criativa ao invés de uma defesa diante de sua auto-estima desvalorizada.

A vergonha se constela diante da possibilidade de confissão, do momento em que o segredo será revelado. Será que o sonho do cocô na calça foi uma confissão inconsciente? como se o sonho contasse quem ela é sem que ela mesma saiba disso. Fica a vergonha cujo motivo principal está inconsciente. O sentimento de vergonha fica presente na relação analítica e precisa ser trabalhado da superfície em direção às profundezas do inconsciente.

O confessar, no caso de Maria, é fruto da construção de uma relação de confiança entre analista e paciente; é expressar o segredo para que ele possa ser enfrentado. Antes a paciente se via no conflito apenas tomada pela vergonha, agora ela olha e concretiza seus "pecados" em palavras. Passa a controlar um pouco mais seus sentimentos para construir uma narrativa coerente. É claro que isso não acontece com tranqüilidade. Maria alterna momentos em que consegue se controlar e outros em que regride voltando a transparecer um lado infantil. Chora e faz birra por não suportar o que vê, mas também para que um limite seja imposto. No momento da confissão uma função materna menos dissociada é construída contratransferencialmente. A confissão é parte importante para que Maria possa ligar a consciência do ego a conteúdos inconscientes. Confessar é assumir a culpa, se responsabilizando. Maria faz isso assumindo o difícil momento que virá a seguir, no qual, de fato, terá que rever seus atos e os dos outros sem mais esperar por soluções ou respostas mágicas.

Portanto, Maria não fica apenas na culpa por algo que fez, mas junto aparece a vergonha que traz a possibilidade dela ir além, de ter crítica, o que colabora para seu crescimento individual. Esse sentimento traz muita angústia e tristeza e é em função disso que a vergonha deve ser fator importante na construção de sua perspectiva de vida. Nesse sentido, questionar com Maria o que poderia aliviar essa vergonha torna-se parte fundamental do processo terapêutico. Assim, a vergonha não é entendida apenas como algo que tem uma causa, que remonta à infância da paciente, a história com a mãe, a idéia de pecado e valores morais introjetados de maneira tão radical e que configuram o complexo materno, mas a vergonha passa a ser entendida como uma função e conseqüentemente algo que tem uma finalidade na vida de Maria. Nessa diretriz, a vergonha pode colaborar para sua transformação.

A vergonha também proporcionou o aprofundamento na relação transferencial entre analista e paciente. Creio que isso se deu, pois Maria se viu diante de alguém e dentro de um ambiente no qual a revelação poderia se dar. Para tanto, foi muito importante a construção de uma relação de confiança, respeito e sem um julgamento moral. Como analista tive que ter consciência de qual era o meu papel, compreendendo o papel materno e paterno projetado. Construir e proporcionar o desenvolvimento de um símbolo materno menos polarizado, não sendo apenas a mãe crítica, castradora e exigente, mas também acolhedora e carinhosa. A vergonha da paciente colaborava na diretriz em que ela poderia viver esse sentimento de inadequação, pois só com essa situação configurada seria possível encontrar a aceitação e a conseqüente superação de momentos difíceis. A vivência da vergonha trazia a possibilidade de perdoar a si mesma.

Esse é o momento da análise no qual nos encontramos. Maria tem feito esse percurso incessantemente. Intercala momentos em que confessa algumas coisas e outros que se cala ou fica infantil. A dinâmica ainda não se transformou por completo, mas o mais importante é Maria começar a ter consciência de que essa dinâmica faz parte do seu modo de estar no mundo.

Para isso não basta apenas sentir vergonha e confessar o que acha que fez. É necessário também enfrentar a crítica rígida que tem de si mesma. O confronto com a verdade é doloroso, mas aos poucos vai deixando Maria um pouco mais fortalecida. Ela passa a reviver na sessão situações nas quais brigas, discussões e rompimentos com outras pessoas ocorreram. Começa a falar de conversas e pedidos para Nossa Senhora. Surge o símbolo da Grande Mãe, parecendo ser o self quem agora está falando. Recorre à Nossa Senhora para tentar enxergar e compreender melhor determinadas situações. É nesse contexto que Maria começa a falar da possibilidade de perdoar algumas pessoas e também de pedir perdão. Sente necessidade de não estar mais numa situação na qual não consegue mais ficar ou conversar com outras pessoas. Está tentando se reconciliar com os outros e consigo mesma.

A psicoterapia tem ocorrido colaborando no sentido de Maria não viver apenas o pecado, mas também a confissão. Isso contribui para a compreensão de que o sagrado não existe sem o profano, e que, portanto, o caminho dela na terra deve ser em busca dessa integração e não com base na eterna impossibilidade de ser Deus. Sua evolução precisa ter na essência o símbolo do divino, o encontro com o Self. Isso propiciará um caminho de evolução no qual bem e mal se complementam, não se aniquilam e acima de tudo fertilizam a vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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