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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


12. Dispositivo Oficinas Terapêuticas: Efeitos Clínicos no Cotidiano

As quintas-feiras de manhã na Clínica Ana Maria Poppovic são bastante peculiares, pois neste dia, crianças e adolescentes esquisitos ocupam o espaço com suas explorações, gritos e andanças.

As crianças psicóticas e autistas não estão mais somente dentro das salas de tratamento, elas estão na clínica, fazendo parte do cotidiano da clínica. O tratamento delas é constituir uma relação, e nesse sentido, as trocas com o externo, com os objetos e as pessoas que estão na clínica neste dia são fundamentais para a construção de relações. Essas trocas põem em cheque a clínica tradicional, asséptica e rigorosa, e nos obriga a pensar em porque o tratamento se dá dessa maneira, e a repensar os limites do espaço físico da clínica e os limites do nosso próprio corpo e mente, pois entramos em um espaço único, um mundo de vivências pré-verbais construído a partir de sensações que as crianças autistas experimentam corporalmente. Também os limites impostos pelo externo nos ajudam a refletir sobre nosso trabalho e nossas impossibilidades.

As crianças e adolescentes com quem trabalhamos na clínica são crianças e adolescentes que se afastam do nosso olhar, e que a expressão do que estão pensando é tão confuso que encontramos grandes obstáculos para entender.

Percebemos nessas crianças e adolescentes que há uma perda de contato com a realidade a qual costumamos compartilhar e que uma das conseqüências desse fato é a dificuldade para estabelecermos parcerias.O mundo que nós habitamos e o mundo que elas habitam são diferentes e a comunicação entre esses mundos é muito precária, já que poucos deles têm uma estruturação mínima na linguagem, a forma mais usual de se fazer entender.

O contato com essas crianças e adolescentes é marcado por desencontros; temos a impressão de que existe para elas uma dificuldade enorme de fazer parcerias humanas. Partindo de uma perspectiva psicanalítica, pensamos que isso tem a ver com desencontros iniciais, desencontros que aconteceram muito precocemente. No trabalho com crianças e adolescentes autistas e psicóticos nos questionamos continuamente sobre estes desencontros primários, já que uma convicção que anima a psicanálise é a de que o ser humano é um ser inacabado e que a constituição de sua subjetividade vai depender da forma como vivem suas experiências mais precoces.

Do ponto de vista teórico podemos pensar em uma dificuldade de parceria entre mãe e bebê. Supõe-se, na visão da psicanálise, que o vínculo entre mãe e bebê não é marcado, nesse caso, por uma cumplicidade, por uma confiança que sustenta a experiência do bebê de estar vivo e em relação, experiência primordial no processo de subjetivação.

O tratamento dessas crianças e suas famílias é não minimizar o sofrimento, mas ajudar a transformar o sofrimento para que se possa criar potencialidades. Muitas dessas famílias já percorreram longos caminhos para encontrar um lugar para seus filhos, já bateram de porta em porta e foram rejeitados com a afirmação de que o caso de seu filho não era para eles, ou foram parar em lugares onde o tratamento era extremamente oneroso e essas famílias não tinham condição de pagar.

Essa forma de ver o autismo e a psicose vem de uma história marcada por exclusão e enclausuramento, na qual não há lugar social para eles. A maioria dessas crianças e adolescentes não foi à escola, não saem de casa, e suas possibilidades de constituir uma relação são bem restritas. Trabalhamos com outro paradigma - o paradigma da inclusão.

Segundo Basile e André (Tecendo a rede: Trajetórias da Saúde Mental em São Paulo de 1989-1996):

"Vivemos grande parte de nosso cotidianos em uma sociedade árida, avessa às diferenças, exigente de "normalidade", excludente dos mais vulneráveis. Hábil em massificar os projetos existenciais, em homogeneizar os desejos, e isso é particularmente violento para os mais jovens. Violento porque não reconhece modos diferenciados, singulares, para sustentar a vida e o desenvolvimento dentro da teia social.

Essa teia social sem tônus diferenciado rompe-se com facilidade mesmo com pequenos obstáculos, e enrijece-se brutalmente diante da complexidade da vida. Nenhuma criança ou adolescente podem crescer sustentados pela intolerância, assim como não podem desenvolver-se numa sociedade inerte diante de seus problemas. Crianças e adolescentes, para enfrentar a difícil tarefa de crescer e pertencer ao mundo, precisam ter assegurados laços sociais em torno de si, como uma teia com a textura certa para proporcionar-lhes liberdade e acolhimento"(p. 129-130).

O projeto oficinas tem um papel importante de ser um primeiro espaço de convívio com outras crianças, de relação com o social e com a cultura.

São ao todo cinco oficinas com duração aproximada de quarenta minutos (três para crianças: música, rádio e teatro; e duas para adolescentes: computação e expressão). Um dos objetivos da apresentação das diferentes materialidades das oficinas é o de trazer elementos da cultura para a vida das crianças e dos adolescentes. São também os recursos pelos quais muitas crianças que ainda não falam podem usar para se expressarem.

Cada oficina tem três atentos e dispostos terapeutas que se oferecem psíquica e fisicamente para criar acontecimentos e oferecer um maior número de possibilidades de engates com as crianças, podendo alimentá-las transferencialmente de um modelo expressivo, em que o corpo-a-corpo entre os terapeutas e as crianças produz impactos muito menos discursivos do que dramáticos, podendo captar e facilitar a recomposição do mundo delas através dos acontecimentos. Desta forma, o desenvolvimento em um ambiente de segurança e confiança as prepara para uma vida em que a subjetividade se faz presente.

O tratamento delas é constituir uma relação e, neste sentido, as trocas com o externo, com os objetos e com as pessoas que estão na clínica neste dia são fundamentais para a construção de relações. Essas trocas enriquecem a clínica tradicional, rigorosa e asséptica no acesso à psique do paciente, uma vez que transcendem a relação entre paciente e terapeuta.

Basile e André afirmam que ao nos dispormos a transitar pelo mundo da loucura, muitas portas se abrem na possibilidade de coexistir em uma mesma dimensão social, na qual diferentes construções de expressão cabem juntas. As autoras descrevem que neste tipo de trabalho com autistas e psicóticos "(...) deixamos de ser terapeutas de enquadre pré-formados (...) Ficamos expostos ao mais cru e ao mais sofisticado de nós mesmos. Somos multiplicados sem perder o que somos. Ganhamos assim o poder de fabricar territórios expressivos (...)" (p.118 e 119). Neste momento, novas formas de ver a loucura são acolhidas pela sociedade, e a heterogeneidade, possibilitadora dos laços sociais tão importantes para o desenvolvimento da criança e do adolescente, pode dar lugar para as diferenças coexistirem.

Pensamos que a clínica Ana Maria Poppovic pode ser vista como um microcosmo, como um recorte do mundo. O mundo onde essas crianças habitam é recriado na quinta-feira de manhã, quando a clínica acolhe e coletiviza a loucura em seu espaço.

Podemos detectar isso, quando requisitamos a faxineira da clínica para o trabalho pesado e ela diz: "Ah! Foi a Bruninha* que sujou o banheiro inteiro de cocô?". O porteiro, por sua vez, não é mais só o porteiro. Ele é o co-terapeuta, representante da função masculina, que impõe limite, fecha o portão e não deixa a criança ir para a rua. Podemos pensar que ele parte de um princípio social básico no qual criança não vai para a rua sozinha e ao mesmo tempo tem o cuidado na interação, pois percebe e intue que não está se relacionando com uma criança qualquer, por isso seus limites são maiores.

Neste sentido, cada diferente pessoa que compõe a clínica, desde o porteiro, a faxineira, outros pacientes, os pais, os terapeutas e professores, quando suportam a diferença, se dispõem a cuidar dela, acabando por se implicarem na construção de um mundo onde a loucura também habita.

Estamos inseridos em uma cultura no qual a tolerância com as diferenças desempenha papel muito pequeno e a categoria do "nós" é extremamente restrita a alguns grupos que se reconhecem como iguais e assim se fecham contra qualquer um que esteja no papel do estrangeiro, do diferente.

A clínica do autismo e da psicose nos oferece a possibilidade de ampliar essa categoria do "nós" e a topar o que pouco entendemos e o que não sabemos. Quando conseguimos estar um pouco mais livres de terapeutizar, de seguir a idéia de cura, somos contaminados pela capacidade de incluir a diferença e reconstruir um mundo em que a experimentação é coletiva.

Acreditamos que para lidar com a loucura e com outras formas de exclusão é preciso ampliar coletivamente as questões referentes às mesmas, retirando-as dos âmbitos de saberes periféricos, fazendo-se necessário que se crie um novo tipo de memória que se oponha à exclusão e que funcione como uma resposta micro-política ao poder.

Na quinta-feira de manhã, a clínica Ana Maria Poppovic se transforma em um mundo possível. Um mundo onde a loucura também faz parte da subjetividade do grupo.