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BOLETIM CLÍNICO - número 19 - novembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


7. Don Quijote de La Mancha - O Sonhador de Alcalá de Henares: Uma Interpretação Psicológica

Don Quijote é um dos exemplos da literatura em que a criatura cresce e supera o criador.

O autor de Don Quijote é Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em Alcalá de Henares, nas proximidades de Madri, em 1547.

Cervantes alistou-se como soldado ainda jovem, e nesta atividade conseguiu conhecer o vigor e a alta qualidade do Renascimento Italiano.

Em 7 de outubro de 1571, o autor participou da célebre batalha de Lepanto, na qual foi ferido por tiros de arcabuz e resultando-lhe a perda da mão esquerda, por isso ficou conhecido como Manco de Lepanto.

Em 1575, ficou aprisionado pelos turcos como escravo durante 5 anos, em Argélia. Durante a prisão, escreveu sua primeira composição pastoral Galatéia.

Teve uma filha natural de uma relação com uma comediante e depois casou-se com Catalina de Salazar.

Mesmo sendo pouco conhecido no meio literário, Cervantes conseguiu se relacionar com figuras importantes da literatura de sua época: Gôngora, Calderón de la Barca, Quevedo, Tirso de Molina e outros.

Participou arrecadando fundos na formação da Invencível Armada Católica de Felipe II, a qual foi derrotada pela Armada Inglesa.

Em 1605, conseguiu que Don Quijote fosse impresso. O livro teve sucesso imediato, apesar da inimizade de Lope de Vega, já conhecido como escritor. O sucesso foi tão grande que foi reimpresso seis vezes no prazo de um ano.

Apesar de sua vida está cheia de dessabores familiares, dificuldade financeira muito grande e protesto de divida, Cervantes conseguiu escrever outras novelas que tiveram pouco sucesso.

Em 1614, um certo Avellaneda publicou um Quijote apóclifo, o que levou Cervantes a escrever a segunda parte que veio a ser publicada em 1615.

Em 1616, ingressou na Ordem Terceira de São Francisco com votos de pobreza e humildade. Esse ato foi a última decisão importante de sua vida, pois faleceu em abril do mesmo ano.

DON QUIJOTE DE LA MANCHA

"Beirava o nosso fidalgo a casa dos cinqüenta . Era de compleição rija, parco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça." (Cervantes, pg 55, tomo I)

Don Quijote de tanto ler romance de cavalaria, em que os cavalheiros sempre salvava donzelas dos seus perseguidores e ainda fazia justiça nas terras pelas quais passavam, de tanto ler romance e com tanto empenho já nem dormia, Don Quijote passava a querer viver as aventuras de um cavalheiro, sem perceber que o tempo dos romances de cavalaria já tinha passado. Mesmo assim procura armas e um cavalo e se faz armar cavalheiro pelo dono de uma pousada que não sabia o que que Don Quijote estava pretendendo.

No inicio do livro como no transcorrer das aventuras, Cervantes cria um personagem que está vivendo no cotidiano o que tem na imaginação. Assim quando chega numa pousada está vendo um castelo quando o dono o recebe, vem nele o Senhor do castelo e as moças que atendem na pousada são donzelas de rara beleza.

Considera que Cervantes foi um homem de profunda intuição, já que descreve o processo psicológico "projeção" de maneira magistral. Aspecto físico de Don Quijote corresponde ao longilinio da tipologia de Pende, que seria colocada três séculos mais tarde. Don Quijote como cavalheiro precisaria de um escudeiro. "Nesse tempo chamou D. Quixote um lavrador vizinho seu, homem de bem - se é que tal título se pode dar a quem é pobre -, mas por demais crédulo. Enfim, tantas lhe disse, tanto porfiou e lhe prometeu, que o pobre vilão determinou de sair com ele e lhe servir de escudeiro. Disse-lhe Don Quijote, entre outras coisas, que fosse com ele de bom grado, pois alguma vez podia lhe acontecer uma aventura que lhe ganhasse, do pé para a mão, alguma ínsula e o deixasse por governador dela. Com essas promessas e outras que tais, Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos e se assentou como escudeiro do seu vizinho." (Cevantes, opus citado pg. 112)

Cervantes usa um recurso inteligente para dar uma descrição física dos seus personagens, disse que achou uns cartapácios que continha a história de Don Quijote em árabe, e num dos cartapácios tinha uma pintura da batalha de Don Quijote com o viscaíno.

DESCRIÇÃO DE SANCHO PANZA E ROCINANTE

"Estava Rocinante maravilhosamente pintado, tão de longo e comprido, tão desmaiado e magro, com tanto espinhaço, tão héctico confirmado, que mostrava bem às claras com quanto avisamento e propriedade se lhe pusera o nome de "Rocinante". Junto dele estava Sancho Pança, tendo seu asno pelo cabresto, aos pés do qual havia outro rótulo que dizia "Sancho Sancos", e havia de ser porque, pelo que a pintura mostrava, tinha ele a barriga grande, o tronco breve e as pernas finas e longas, e por isso deve de ter recebido o nome de "Pança" e de "Sancos", que com essas duas alcunhas o chama por vezes a história." (Cervantes, opus citado pg. 134)

A descrição de Don Quijote por incrível que pareça não foi dada quando se apresenta a pintura da batalha, só a descrição de Sancho Panza e de Rocinante como vimos. A falta de descrição de Don Quijote com Sancho Panza e Rocinante na pintura da batalha nos leva a trazer de outro ponto da narrativa a descrição física de Don Quijote

"Beirava o nosso fidalgo a casa dos cinqüenta . Era de compleição rija, parco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça." (Cervantes, opus citado pg. 55).

Não deixa de ser uma concepção muito intuitiva de Cervantes ter polarizado seus personagens, de um lado o pícnico e de outro o leptossoma de Kretschmer.

1. O tipo pícnico: Nele predomina o diametro anteroposterior abdominal. Rosto, peito e abdômen comprido e grossos; membros curtos e bem formados. Mãos largas e curtas articulações delicadas, cabeça levemente enterrada entre os ombros, pernas finas. O rosto do pícnico propende a vermelhidão, e a gordura tende a concentrarse especialmente debaixo do queixo. Os homens pícnicos são carecas precoces, por seborréia; desde a mocidade se inicia neles a "curva da felicidade" (Mira y Lopez pg 81. traduzido do original em espanhol)

2. O tipo leptossoma: Nele predomina o diâmetro longitudinal, vertical, sobre todos os demais; se trata de sujeitos magros, de ombros estreitos, ventre sem gordura e quadris pouco prominentes.
O rosto é também comprido, fino e pálido, com a fronte inclinada para trás , nariz grande e micrognatia, que produz um perfil angular (rosto de pássaro).
O perímetro craneal é pequeno, se alarga por cima das orelhas e tem pêlo forte com sobrancelhas longas muito unidas. As extremidades são longas e delgada; com tendência a cianose de mãos e pés; tem predisposição a ptose visceral e o coração pendular, e signos freqüentes de hipoplasia e hipofunção genital (Mira y Lopez. opus citado pg. 80)

Como se pode observar na descrição de Kretschmer, Cervantes se antecipou a essa Tipologia em 400 anos. Essa intuição em dois tipos morfológicos foi também genialmente colocada ao descrever o psiquismo de Don Quijote e Sancho.

INTRODUÇÃO AOS MOLINOS DE VIENTOS

Um retrato psicológico de Don Quijote é de uma pessoa que projeta na virgilia imagens oníricas que conseguem mudar a realidade que aparece perante ele.

Assim acontece no caso dos molinos de vientos que Don Quijote vê como gigantes. Já o tipo psicológico de Sancho é o oposto, pois ele vê a realidade como aparece aos seus olhos, o gigante de Don Quijote são para ele os molinos de vientos.

Para Sancho, a satisfação das necessidades primárias são o suficiente: comer, beber um bom vinho, ter prazer com sua mulher e acompanhar Don Quijote porque ele lhe ofereceu a governança de uma insula.

"E, isto dizendo, e encomendando-se de todo coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança enristada, arremeteu a todo o trote de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha a frente; e ao lhe acertar uma lançada na asa, empurrou-a o vento com tanta fúria que fez a lança em pedaços, levando consigo cavalo e cavaleiro, que foi rodando pelo campo muito estropiado. Acudiu Sancho Pança ao seu socorro, a todo o correr do seu asno, e ao chegar viu que não se podia mexer: tamanho fora o tombo que dera com ele Rocinante.

- Valha-me Deus! - disse Sancho, - Eu não disse a vossa mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e só o podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?

- Cala, amigo Sancho - respondeu Don Quijote - , que as coisas da guerra mais que as outras estão sujeitas a contínua mudança; quanto mais que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão que me roubou o aposento e os livros tornou esses gigantes em moinhos, para me roubar a glória do seu vencimento, tal e tanta é a inimizade que me tem; mas, ao cabo do cabo, de pouco valerão as suas más artes contra a bondade da minha espada". (Cervantes. Opus citado pgs, 118 e 120).

A visão genial de Cervantes sobre os seres humanos aparece nas pesquisas de Sheldon-Stevens que encontraram três tipos básicos na morfologia humana destes 2 são Don Quijote e Sancho Panza.

Das tipologias morfológicas e psicológicas da segunda metade do século XX, a que permanece até hoje muito é a de Sheldon-Stevens.

"OS COMPONENTES PRIMÁRIOS MORFOLÓGICOS DE SHELDON-STEVENS"

Tudo que somos física ou materialmente provém do desenvolvimento das três lâminas fundamentais do blastodermo: ectodermo, mesodermo e endodermo. Se dividirmos nosso corpo em setores: cabeça tórax, abdômen, braços e pernas, encontraremos em cada um deles, em diversas proporções, os tecidos derivados dessas folhas.

O predomínio de cada folha do blastodermo, vai dar origem à um tipo de corpo: o endodermo, cujo desenvolvimento vai dar origem aos orgãos relacionados com as atividades digestivas e assimilativas, ou seja, principalmente a vísceras. Nos indivíduos em que predomina este primeiro componente tendem a adotar a forma esférica; são pouco densos (flutuam facilmente na água), e se os outros dois componentes são escassos, adquirem um aspecto "fofo".

Segundo componente é o mesomórfico; neste se dá o predomínio dos tecidos conjuntivos, ósseos e muscular. Quem tem muito desenvolvido este componente apresenta um aspecto "maciço e forte" (atlético) com tendência à figura retangular, possuem ampla rede vascular e pele grossa.

O terceiro componente é a ectomorfía. Corresponde ao predomínio relativo dos tecidos derivados do ectodermo, ou seja, pele, sistema nervoso e órgãos sensoriais. Apresentam uma superfície cutânea relativamente grande e, por onde, se encontram mais expostos ao contato com o mundo exterior; são, portanto, frágeis.

Correspondências psíquicas dos componentes primários - Em relação com cada componente primário do somatotipo, temos um componente primário do psicotipo, ou seja, dele que Sheldon-Stevens denominam tipo temperamental e pelo qual concretamente designam the pattern quantitatively expressed in terms of some schema of compomentes which offers a frame of reference for na operational psychology . Vejamos quais são estes componentes:

Viscerotonía - Corresponde, como se pode perceber, a endomorfía somática e se caracteriza pela tendência à vida cômoda e epicúrea, fácil, "burguesa".

Somatotonía - É a expressão dinâmica da mesomorfia. Quem tem dominante estes componentes são pessoas sempre dispostas a "falar claro e direto", amam a aventura, o esporte e a competição.

Cerebrotonía - Corresponde ao predomínio da ectomorfía. Quem tem dominante são pessoas predispostas à questionamento, à hipersensibilidade e aos conflitos íntimos; em uma palavra, predisposta à neurose, ou pelo menos, ao excesso de tensão e preocupação íntima. (Emilio y Mira opus citado cap. XV)

Como podemos perceber, tanto na morfologia de Kreschmer como no trabalho mais em profundidade de Sheldon-Stevens, Cervantes conseguiu retratar através da sua intuição o tipo endomorfo-viscertônico no seu personagem Sancho Panza, e o ectomorfo-cerebrotônico no caso de Don Quijote. Talvez essa visão de dois tipos humanos opostos e ao mesmo tempo reais, deu à obra de Cervantes a permanência no tempo, pois o sonhador idealista e o "curtidor" dos prazeres da vida de hoje continuam a ser estilos de vida mesmo na atualidade.

BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS:

MIRA Y LOPEZ, Emilio. La Constitución y el Psicobiotipo (cap. XV) in Compendio de Psiquiatria.1958 Líbreria "El Ateneo" Editorial 1ª ed. Buenos Aires.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. 2002 Tradução de Sérgio Milona. Editora 34 São Paulo.