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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



26. Psicoterapia Fenomenológica Existencial de algumas Maneiras Patológicas de Existir

Introdução

No presente artigo pretendemos ilustrar aspectos da psicoterapia com pacientes que apresentam restrições na realização de suas possibilidades de existir, por meio do relato de três atendimentos desenvolvidos no Aprimoramento Clínico Institucional: Atendimento clínico fenomenológico-existencial de algumas maneiras patológicas do existir na Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic da PUC-SP.

Lembramos que o objetivo desta apresentação é mostrar as maneiras de viver dos pacientes em questão, o modo como ocorreu a psicoterapia e a relação terapêutica. Não trataremos, portanto, de detalhar ou discutir os quadros patológicos nem estabelecer o diagnóstico que melhor identifica cada um dos pacientes.

Na daseinsanalyse, uma das perspectivas fenomenológico-existenciais, a doença é entendida como modalizações do existir, isto é, maneiras como alguém realiza seu existir, e que se mostram naquele momento prejudicadas. Neste sentido, como a patologia não é compreendida isoladamente nela mesma nem como um conjunto de sintomas isolados e, sim, como uma maneira de o homem realizar o seu próprio existir, o foco da compreensão é o homem que está doente e não as doenças em si. Nos estados patológicos, os modos de existir se encontram prejudicados, pois há uma redução na liberdade do paciente em realizar as suas próprias possibilidades, tanto no modo como ele se relaciona consigo mesmo, quanto com o mundo.

Os sintomas também são pensados como comportamentos humanos que estão referidos à totalidade do existir do paciente, pois são maneiras como alguém corresponde às solicitações do mundo. Assim, os sintomas estão referidos ao entendimento do paciente em relação à presença de algo que surge e da sua possibilidade de corresponder a estas solicitações.

Medard Boss (1963) encontra no pensamento heideggeriano a elucidação da natureza do ser humano, que lhe permite compreender o fato de o paciente poder perceber e vivenciar algo, e que este algo tem sentido para o paciente, seja uma experiência alucinatória ou não.

Na perspectiva daseinsanalítica, o terapeuta procura ver o paciente a partir do próprio paciente, ao buscar compreender as vivências de acordo com os significados e o sentido de tudo que se apresenta para o próprio paciente. O foco da compreensão do terapeuta é o modo como o paciente está sendo no mundo, isto é, como ele está se relacionando consigo mesmo, com os outros e com tudo o que lhe diz respeito.

Esta atitude do terapeuta favorece ao paciente aproximar-se de si mesmo, o que lhe permite perceber melhor o que e como ele está vivendo. Deste modo, o paciente se familiariza com suas possibilidades e impossibilidades (seu poder e não poder ser). Quando o paciente vivencia efetivamente as suas dificuldades e possibilidades, ocorre uma aproximação da sua própria experiência, que favorecerá uma melhor compreensão de si mesmo.

No decorrer da terapia, o terapeuta solicita que o paciente perceba e considere seus anseios, suas capacidades e suas limitações nas diversas situações de sua vida. Ele solicita também que o paciente seja, pelo menos na situação da psicoterapia, o que ele pode ser, isto é, que ele se comporte da maneira que corresponde ao seu poder ser no momento atual de sua vida.

Vemos que alguns pacientes, quando entram em contato com "novas possibilidades" e "novos sentimentos" (que sempre foram evitados), experimentam a sensação de ameaça e perigo. Nestes casos, é importante que o terapeuta ajude o paciente a discriminar o que ele está podendo escolher e fazer, principalmente se precisar tomar decisões importantes para sua vida.

Assim, salientamos a importância de que não só o terapeuta aceite e respeite o que o paciente está vivendo, mas também que o próprio paciente possa perceber e respeitar o que ele pode e o que ele não pode ser em cada situação, pois assim ele começa a compreender suas possibilidades e limitações.

A seguir, apresentaremos o relato de atendimentos com três pacientes para ilustrar como a psicoterapia fenomenológico-existencial ocorreu:

Apresentação dos atendimentos

A - José

O paciente José (na época com 17 anos) procurou a Clínica Psicológica da PUC, no segundo semestre de 2002, com a queixa de que estava apresentando sintomas que o impediam de levar uma vida "normal". Segundo ele, estes sintomas se manifestaram, primeiramente, em 2001, e consistiam na percepção auditiva de músicas assim como de uma sensação de se encontrar "por detrás" de sua própria pele, como se esta fosse uma máscara.

O paciente considerava que as pessoas à sua volta não conseguiam realmente conhecê-lo, por sua dificuldade de expressar emoções. Imaginava que quando as outras pessoas olhavam para ele ou conversavam com ele, não conseguiam perceber suas dificuldades.

O paciente afirmou ter tido contato com outros serviços de saúde e que estes já haviam fornecido dois diagnósticos: o primeiro, de depressão, e o segundo, de transtorno bipolar.

A partir do momento em que o paciente começou a ser atendido na Clínica Psicológica da PUC-SP, em maio de 2002, verificou-se seu desejo de eliminação de suas percepções auditivas, assim como da sensação de máscara, fenômenos estes que o "separavam" das outras pessoas. Em função disto, foi proposto ao paciente que se submetesse a uma consulta psiquiátrica na clínica, além do processo psicoterápico, o que poderia ajudá-lo na diminuição do seu sofrimento.

Após sua consulta inicial, o médico receitou medicamentos psiquiátricos na tentativa de reduzir seus sintomas (o que não foi totalmente solucionado até a presente data), e levantou-se a hipótese diagnóstica de que os sintomas do paciente poderiam indicar algum quadro esquizóide, ou mesmo dissociativo. O tratamento e acompanhamento psiquiátrico continuam até o momento.

Inicialmente, o principal objetivo do paciente era o de se compreender melhor e, principalmente, de curar-se no sentido de querer se livrar dos sintomas. O trabalho terapêutico consistiu em ajudá-lo a perceber como lidava com os sintomas e como estes afetavam a sua vida.

O processo terapêutico evidenciou que o início dos "sintomas" descritos pelo paciente aparecem após o término de um relacionamento amoroso antigo. José afirma que, em determinado momento, "avançou o sinal" (o que parece indicar algum tipo de comportamento de caráter sexual), o que gera desgosto por parte da ex-namorada, que acabou por terminar a relação.

Nas conversas e diálogos estabelecidos na terapia, ficou bastante claro que José sente culpa por ter demonstrado seus desejos e vontades nesse episódio, afastando de si, conseqüentemente, alguém que amava muito. Ele expressa ter desconsiderado se estaria agradando ou não sua ex-namorada.

O paciente afirma que seus "sintomas" surgiram no dia seguinte a este acontecimento, e parece perceber que os mesmos demonstram corporalmente sua dificuldade de novamente expor suas vontades, em virtude do medo que sente de afastar de si as pessoas que ama.

Para José, ser um bom moço, isto é, aquele de quem todos gostam, significa reprimir os seus desejos e se preocupar excessivamente com o bem-estar alheio, enquanto demonstrar e realizar as suas vontades o transformariam em uma pessoa ruim, até mesmo culpada, que poderia ser vista de modo pejorativo por pessoas de quem ele gosta.

Ficou claro, então, para o paciente, que seus sintomas permitem que ele se afaste e evite um contato íntimo com outras pessoas, e que o fato de se comportar sempre em função da solicitação dos outros acaba por anulá-lo.

A terapia girou, então, em torno de uma tentativa de diferenciação de suas questões pessoais das de outras pessoas à sua volta, na procura de deixar mais evidente sua identidade e o sentido das suas ações no seu dia-a-dia.

Após menos de um ano de processo terapêutico, a sua "doença" não mais o impossibilita de levar a sua vida, conseguindo hoje uma maior "aceitação" de sua condição. O paciente não está "paralisado", esperando uma cura que, anteriormente, era o único assunto no qual conseguia pensar.

Segundo o paciente, no momento ele não está preocupado apenas em se livrar da sua "doença", mas está atento também a outros aspectos de sua vida; aspectos que estavam, até então, apagados, como: a procura por um emprego, novos relacionamentos, estudos, etc.

Assim, o paciente está mais independente do que no passado, conseguindo ter hoje um maior apoio interno, apoio este muito diferente daquele que antes procurava e que se traduzia por uma dependência enorme do afeto dos outros, que em última instância só o levava a uma condição que lhe trazia muito sofrimento.

O relato deste atendimento mostra que inicialmente o paciente quer se livrar de seus sintomas de qualquer maneira. Isto é compreensível, pois é natural querermos nos livrar daquilo que incomoda e querermos nos sentir bem. Por outro lado, vemos que o paciente tem, no início da terapia, uma atitude que corresponde ao modelo médico tradicional, que entende que a eliminação dos sintomas corresponde à recuperação da saúde. Em relação às problemáticas humanas, a simples eliminação do sintoma não significa cura. Por exemplo, quando um paciente é medicado com antidepressivo e se sente mais bem disposto, isto não significa que superou a depressão; tanto que muitos pacientes, quando interrompem o uso da medicação, apresentam novamente sintomas depressivos. Neste sentido a abordagem fenomenológica-existencial salienta a importância do esclarecimento do significado e o sentido dos sintomas em relação à maneira como o paciente vive para que ocorra a superação das restrições patológicas.

B - Pedro Idade: 31 anos

Pedro procurou a clínica por encaminhamento de um psiquiatra do HC em 96. Ali participou de um grupo terapêutico com pacientes viciados em sexo e, posteriormente, passou a ser atendido individualmente, pois não se identificou com o grupo. Toma medicação (antidepressivo e ansiolítico). Foi atendido por três psicólogas nos últimos seis anos até ser encaminhado para mim, e sempre fez questão de ser atendido por mulheres.

O paciente é solteiro, mora com a mãe, os irmãos e a avó (que sustenta seus gastos). Seu pai faleceu há 5 anos. Fez Faculdade de Administração, mas não seguiu a carreira. Chegou a fazer estágios, mas sem dar continuidade; disse que foi muito difícil terminar a faculdade pois tinha problemas de relacionamento com os colegas. Sentia-se humilhado perante os outros, pois gagueja ao falar em público ou quando está nervoso, como em apresentação de trabalhos. Relatou ter conseguido terminar a faculdade porque estava em terapia. Está a três anos sem emprego.

Quando começamos o atendimento, sua queixa era "querer limpar a sombra que existe dentro dele, coisas ruins, mostrar seu lado B" (sic) e falar sem gaguejar - já havia ido a fonoaudiólogas, que disseram que seu problema era psicológico. Queria arrumar emprego e fazer algum outro curso de graduação ou pós-graduação, mas não sabia qual. A maior parte do seu tempo é preenchida dormindo, navegando na Internet ou respondendo a anúncios do jornal onde busca uma noiva cristã - que deve seguir as mesmas regras que ele segue.

Pedro tem uma grande dificuldade em se aprofundar em qualquer assunto e identificar sentimentos como raiva, agressividade, amor, etc. Ele conta os fatos sem dizer o que pensa. É preciso sempre perguntar: E você, o que pensa disso? Como se sentiu? E geralmente a resposta é "não sei". Pergunto novamente até ele conseguir dizer algo dele. Tem dificuldade em saber quem ele é: que profissional, filho, sexo... têm dúvidas sobre sua aparência, se é realmente a de um homem, precisa olhar para o pêlo de seus braços e sua barba para se certificar de que a aparência é a de um homem; quando passa perfume ou deixa seu cabelo um pouco mais comprido já fica em dúvida se está agindo como um homem deve agir. Ele imagina que existe um jeito "certo" de ser homem e que talvez ele não esteja sendo de acordo.

Ele não tem seus valores definidos e se agarra aos que lhe dão um norte, como os dogmas da igreja, mesmo que estes não façam sentido para ele. Por exemplo: o padre manda não ter relações sexuais antes do casamento, ele namorou durante dois anos e não seguiu essa regra, hoje sente-se culpado por isso. Acredita que ser homossexual é errado, mas tem rompantes que o levam a ter relações sexuais com travestis. Seus sentimentos e atitudes são muito extremados; para consertar sua gagueira quer fazer uma cirurgia que desloca o maxilar e o recoloca em outro lugar.

Sente-se muito inseguro para tomar decisões, não se sente acolhido pela família nem amigos. Também sente-se muito sozinho, evitando envolver-se, para se proteger de críticas, julgamentos, sentimentos, enfim, da vida.

Pedro está sempre preocupado em fazer o "certo". Vive o paradoxo de ter um grande desejo de superar suas dificuldades e atingir suas metas e, ao mesmo tempo, sente muito medo disto. Cria soluções mirabolantes e geralmente inviáveis para seus problemas, evitando o caminho que precisa percorrer para solucioná-los. Isso resulta em estagnação, pois a solução parece sempre estar muito distante de suas possibilidades de ação.

Relaciona-se com poucas pessoas e tenta mostrar-se sempre com emoções controladas, "pois não é certo discutir", mesmo quando não concorda com o outro. Mas, às vezes, essa "regra" é quebrada e ele explode, geralmente com sua família, que então o chama de louco.

No início do processo terapêutico, ele "despejava" os acontecimentos de sua vida: a mãe era louca e fanática; o pai tinha AIDS, teve um namorado durante o casamento com a mãe; um irmão era drogado. Trabalhar era o certo; pregava sua religião; contava suas "perversões sexuais"; queria casar e, até lá, não ter relações sexuais; dizia-se "louco" entre outros rótulos, nos quais tentava se encaixar, etc. Perguntava constantemente o que ele era. Não parava de falar do início ao fim da sessão, pulando de um assunto para outro.

Diante do que ele trazia, comecei a perguntar o que ele sentia ou pensava sobre tudo isso para tentar achá-lo no meio de seus relatos. A intenção era que ele pensasse sobre ele mesmo, no que ele acreditava ser, do que gostava, em que área trabalharia. Perceber que ali não seria julgado contribuiu muito para ele se sentir à vontade para falar sobre si próprio, pois sua última experiência em contar seus atos resultou na expulsão de sua igreja. Contudo, pude perceber que não se tratava somente de ser julgado, mas também de realmente não saber dele. Era preciso mostrar a ele a diferença de fazer algo ou pensar em fazer: bater nos colegas da faculdade, por exemplo. Sentia-se culpado por pensar nisso como se o tivesse feito. Ao ser questionado: você bateu? Respondia: "Não, eu não faria isso, mas senti vontade!". Ele acha errado sentir raiva de alguém, sentindo-se culpado e louco por pensar nesta possibilidade.

Se em qualquer terapia, busca-se um maior entendimento do próprio paciente; neste caso, é necessário um entendimento literal. O paciente precisa olhar para si mesmo de forma muito concreta, para se organizar em sua vida.

Após quase um ano de terapia, a dinâmica do certo e errado continua sendo sua referência para se olhar. Mas hoje, consegue ver-se um pouco mais e, conseqüentemente, organizar-se em algumas coisas: "quero ajudar o próximo, então vou fazer Serviço Social". Entrou na faculdade e sentiu que não teria estrutura para continuar o curso, porque se percebeu como muito preconceituoso e, a seu ver, teria que lidar com problemas demais, "já basta os seus" (sic). Então, chegou à conclusão de que pode ajudar o próximo através da sua igreja. Fez um movimento que não resultou no que ele imaginou de início, mas percebeu coisas sobre si mesmo e pôde encontrar outras alternativas. Com isso está menos ansioso em relação a resoluções imediatas e mágicas para seus problemas, no caso, o curso que deve fazer. Ele está começando a perceber que pode ir fazendo pequenas coisas para se sentir melhor e ir em direção à realização de suas metas ou desejos. É bastante clara a necessidade do paciente de continuar o processo terapêutico, visto que ainda falta muito a ser explorado e esclarecido a respeito de si próprio.

No atendimento de Pedro, ressaltamos a importância de a terapeuta solicitar ao paciente perceber o que ele sente, o que pensa e o que quer, uma vez que se trata de um paciente que sabe muito pouco dele mesmo. Ele sabe o que esperam dele, o que ele deve ser; isto é, sabe das referências externas a ele mesmo sem conseguir diferenciar, por exemplo, o que ele quer e o que ele deve querer. É interessante notar que, conforme começa a perceber suas vontades, suas possibilidades e suas limitações, fica menos ansioso, pois tem mais elementos a respeito de si mesmo para se situar. Assim, quando consegue considerar suas vontades e suas possibilidades efetivas, também suas expectativas em relação a si próprio começam a ficar mais factíveis e possíveis.

C - Paula Idade: 30 anos.

Paula está sendo atendida há apenas cinco meses e apresenta uma problemática complexa, portanto, ainda não conseguimos ter uma compreensão ampla deste caso. Assim, apresentaremos algumas informações que não nos permitem ainda um entendimento global desta paciente, ou mesmo apontar movimentos significativos de melhora.

A paciente chegou à Clínica da PUC-SP por meio de seu namorado Gustavo, que foi quem a inscreveu. Ela disse ter TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), apresentando "manias e compulsões". Descobriu seu distúrbio através de uma reportagem e relatou sentir esses sintomas desde criança.

Paula nasceu na Bahia e veio para São Paulo com dois anos de idade. Hoje, tem 30 anos. Mora com seu namorado há três. Terminou o 2º Grau, mas não deu continuidade aos estudos. Trabalha como vendedora em uma loja de acessórios em um Shopping. Sua família é muito simples e passa por dificuldades financeiras. A mãe tem problemas de saúde e não trabalha; o padrasto é camelô e a irmã, de 15 anos, só estuda.

Relata o fato de ter sido abusada sexualmente em sua infância (por volta dos 4-5 anos). Apanhava e era obrigada a limpar a casa e o banheiro. Mostra dificuldade em aceitar este período de sua vida. Faz um contraponto entre a infância ideal (aquela que gostaria de ter vivido) - ter um pai, uma mãe, uma casa para morar, uma cama gostosa para dormir, alguém que a protegesse e intercedesse por ela - e sua infância real, que foi bastante diferente. Morava de favor na casa de parentes; ficando, muitas vezes, longe de sua mãe, que não podia protegê-la e nem dar o amparo de que precisava.

De sua pré-adolescência até o 3º Colegial, Paula relata ter vivido uma época boa, pois não precisava trabalhar, preocupar-se com aluguel, não tinha responsabilidades ou compromissos. Tinha uma vida confortável e, o mais importante, tinha sonhos. Deste período em diante tudo piorou - sua família perdeu tudo, seu padrasto parece um mendigo e hoje ela não tem mais sonhos, perspectivas ou objetivos.

Paula tem uma relação complicada com a família. Responsabiliza-se por ela, auxiliando no que pode e no que não pode. A mãe costuma fazer muitos pedidos e reclamações e Paula sempre cede e atende, mas muitas vezes sente-se usada. Acha que sua família não abre mão de nada, mas ela tem de abrir mão de tudo e ajudar. Se não faz isso, sente-se culpada.

Desentendeu-se com o padrasto há pouco tempo, por conta de diversos episódios e, por isso, não freqüenta mais a casa da mãe, pois é o local onde ele também mora.

Relata não conseguir cuidar mais dela mesma, pois se sente na obrigação de cuidar da família e não consegue fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Sente que está parada, que o tempo passa, ela envelhece e não sai do mesmo lugar. As coisas não mudam.

Em relação às outras pessoas, Paula diz que é sozinha, que não tem amigos e se sente boba e usada. As pessoas a procuram para falar dos problemas delas. Acha que a vêem como forte e compreensiva, mas sente que é exatamente o oposto: fraca e incompreendida pelos outros. Talvez pela dificuldade que tem em se mostrar.

Paula apresenta diversas atividades compulsivas . E uma das que tem mais dificuldade para controlar é a necessidade de comprar. Enquanto realiza o ato de comprar, sente-se muito especial, por três motivos: poder ter o que os outros não têm; poder ter o que ela nunca pôde ter e poder ter o que acha que todos têm, tanto para se sentir aceita pelas outras pessoas, quanto para poder se sentir fazendo parte de um grupo.

O fato de ter a faz se sentir importante. Ao mesmo tempo, compra coisas que não têm nada a ver com ela, que não é a "cara" dela, já que não sabe qual é a sua "cara".

Diz que após as compras se sente péssima, com uma sensação de culpa e desprazer. Identifica existir uma ansiedade que precede ao "impulso de comprar", ato marcado por um grande descontrole, o qual, por sua vez, é seguido de culpa. Entende que esta urgência por compras ocorre na tentativa de preencher um vazio que sente.

Costuma deixar de fazer as coisas de que gosta, pois só de pensar que, ao realizar uma atividade, as ações repetitivas vão aparecer ela já desiste. Essas ações se caracterizam por repetições que surgem para evitar ou "esquecer" (fazer desaparecer) um pensamento ruim que lhe invadiu a mente. Não tem controle sobre estes pensamentos e conseqüentemente sobre os rituais.

Paula identifica o início das suas atividades compulsivas. Aos 21 anos foi trabalhar com seu padrasto em seu bar. Ele não a remunerava, pois achava que não era necessário, afinal, ela já tinha tudo. Mas como o tio e a mãe de Paula eram sócios e haviam lhe prometido pagar um salário, ela então reivindicou. A mãe lhe disse que poderia pegar dinheiro no caixa quando precisasse, para comprar uma roupa, sair. Paula ressalta que não conseguia se controlar. "Tinha comichão por pegar o dinheiro no caixa".

Houve um outro episódio que lhe permitiu refletir sobre seus impulsos incontroláveis: a retirada de uma quantidade de dinheiro do caixa de uma loja em que trabalhou como gerente. Isto também ocorreu em mais duas lojas por onde passou. Paula entende que este impulso parece ser uma vingança, como se fosse uma reação, uma forma de resposta às injustiças e males que sofreu. Esta foi a única maneira que conseguiu encontrar para se expressar, uma vez que tem dificuldade para falar o que está sentindo ("engolir sapos").

Diz que fantasiar é a forma que encontra para compensar sua não ação na realidade (por exemplo: imagina que atirou na pessoa que a prejudicou). Sente-se mais calma e relaxada ao fazer isso.

A paciente, ultimamente, tem se queixado de um grande cansaço, com a sensação de trabalhar 24 horas por dia, não conseguindo descansar. "Para dormir é difícil. Até para engolir uma saliva é difícil". Coisas simples que parecem bobas são muito custosas de serem realizadas. Mesmo em atividades de lazer encontra dificuldade para relaxar. Investe toda sua energia no controle dos rituais e pensamentos ruins e não consegue fazer mais nada.

A paciente tem grande dificuldade em saber quem é a Paula. Costuma pegar características e gestos dos outros, na tentativa de construir uma identidade e preencher um vazio que tem.

Paula não reconhece a "Paula doente" como sendo ela, mas também não sabe quem ela é. Precisa esconder e proteger a "Paula doente" das pessoas que estão ao seu redor, pois acredita que não será aceita e ficará sozinha caso lhes mostre este seu lado. Ainda assim, sente-se incompreendida por todos e desprotegida. Por isso, precisa ser o tempo todo uma Paula que ela não é. Luta para "criar e manter" essa Paula para os outros e não assumir a "Paula doente" que é como se sente, e que a faz trabalhar 24 horas por dia.

Reconhece ter um lado bom, mas o outro que caracteriza como ruim tem dificuldade em reconhecer como sendo seu. Diz: "não parece a Paula". Tem dificuldade em entrar em contato com aquilo que é.

Fala de uma vontade de querer ser diferente e conseguir ter um equilíbrio, pois age sempre em um dos pólos: ou ama ou odeia; ou é a primeira ou a última.

Gostaria de ter algo que a destacasse, como ser bonita, por exemplo. Considera-se ingênua e sem experiência. Identifica-se com o mais fraco, mas se sente culpada por não poder ajudá-lo. Ela quer ajudar, mas se vê impotente e esta impotência traz um sentimento de inutilidade, que traz a culpa de não fazer nada por aquele que é indefeso. Identifica-se com o mais fraco porque também se sente fraca, indefesa e desprotegida. Pergunta-se porque o mundo é tão cruel e o que ela está fazendo aqui.

Ao longo do processo terapêutico alguns aspectos puderam emergir e outros puderam ser pontuados. O primeiro deles diz respeito ao conflito da paciente: poder ter X poder ser. O poder ter representa a tentativa de sustentação do não poder ser; além do preenchimento de um vazio e as possibilidades de não estar à margem, poder participar e se sustentar com esse seu modo de poder ser.

Este seu modo de poder ter também expressa uma fragilidade muito grande, pois qualquer simples episódio ou elemento a faz desmoronar. Isto porque, o poder ter não é uma estrutura, é um vazio, que camufla o poder ser como se o estivesse estruturando. Esta suposta estrutura, quando é rompida, deixa-a muito mal: "péssima e culpada".

Outro aspecto importante está relacionado ao controle. Paula usa o ritual para segurar o que considera sua "loucura", mas sofre por não poder fazer as coisas de que gosta. Por outro lado, tenta se controlar para que os outros não a percebam nesta "loucura". Assim, tenta controlar a "loucura" e a forma como as pessoas a percebem, ou seja, para que elas não a percebam.

Existe ainda uma grande dificuldade da paciente em conviver com seu lado "podre", como ela mesma denomina. Idealiza e fantasia um mundo que é particular e cor-de-rosa, mas percebe que nem o mundo e nem ela são assim. Mostra um modo de ser dos compulsivos , pois não suporta os seus aspectos sombrios, pecaminosos ou feios e instaura rituais para se limpar. Sente-se invadida por coisas negativas e sombrias o tempo todo, gastando toda sua energia para procurar controlar a invasão destes aspectos negativos, a fim de assegurar que estes não tomem conta dela por completo.

Protege-se o tempo todo para evitar entrar em contato com o grande sofrimento que sente. Para Paula, é muito difícil perceber e aceitar o que ela é e se apavora, pois percebe em si um grande vazio, que busca incessantemente preencher. Entrar em contato com este vazio, com aquilo que ainda não é, com aquilo que não aconteceu é difícil para a paciente suportar.

Paula tem muito medo de se tornar uma mendiga. Tem a sensação de não pertencer a lugar nenhum, a família nenhuma, de não se pertencer. Por isso, está solta, sem apoio, sem nada e ninguém, assim como um mendigo que se sente marginalizado, discriminado e ao léu.

A paciente tem demonstrado ao longo de todo o processo uma grande angústia em relação ao tempo de duração do tratamento e aos resultados que alcançaria. Esta angústia fala do sofrimento que tudo isso lhe causa, o peso e a dor de querer se livrar de seu grande sofrimento imediatamente.

Acredito que a terapia é o espaço que auxiliará a paciente a suportar este grande sofrimento e, mais do que isso, apropriar-se dela mesma para criar condições de conviver com suas dificuldades, e só a partir daí, então, desconstruí-las para iniciar uma nova forma de reconstruir-se.

No atendimento de Paula, vemos que será necessário um longo caminho para que, efetivamente, comecem aparecer resultados mais evidentes do trabalho terapêutico, pois a paciente precisa muito da ajuda de alguém que a escute, com quem compartilhe suas angústias e sofrimento. Ao mesmo tempo, para Paula é muito difícil aderir à proposta terapêutica no sentido de entrar em contato consigo mesma e perceber como vive, pois, como já dissemos ela se apavora ao entrar em contato com o que ela é.

A paciente já chegou à psicoterapia com o diagnóstico de TOC, de acordo com a psiquiatria contemporânea. Constatamos que Paula apresenta alguns comportamentos que correspondem aos critérios diagnósticos do DSM, como, por exemplo os rituais, mas a experiência desta paciente apresenta uma complexidade que não permite reduzi-la a este diagnóstico. O mais importante para o nosso trabalho terapêutico é a busca do esclarecimento junto com a paciente de todas as suas experiências, inclusive as obsessões, compulsões e atividades compulsivas, através da compreensão do significado e do sentido de seu viver. Questões que começaram a ser respondidas, por exemplo, em relação a seu impulso irresistível por comprar, como uma tentativa de preencher um vazio ou quando observa que comprar e ter algo a faz sentir importante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSS, M. Psychoanalysis & Daseinsanalysis. New York: Basic Books Publishers, 1963. CARDINALLI, I. E. A compreensão da esquizofrenia na obra de Medard Boss. Dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, 2001.

GEBSATTEL, V. E."El mundo de los compulsivos". In May et al. Existência, ed. Gredos, pp. 213-231, 1977.

DSM-IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mentais, 4ª. Ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.