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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



17. Uma Criança Sem Lugar na Família - Um Estudo de Caso

Joana é uma criança, que chega à Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" da PUC-SP, com oito anos de idade. Cursava a terceira série do ensino fundamental numa escola pública próxima à sua casa e morava com a mãe, o padrasto, um irmão e uma meia irmã, filha de sua mãe com o atual marido. Portanto, Joana é a primogênita dentre três crianças.

Dora, a mãe de Joana, chegou para o atendimento queixando-se principalmente dos problemas de aprendizagem e relacionamento da menina. Esta não sabia, e ainda não sabe, ler e escrever fluentemente. Seu relacionamento com outras crianças é quase inexistente, está sempre isolada ou na casa de crianças que a mãe desconhece e descreve como sendo um lugar desagradável, miserável e onde há pessoas que usam e vendem substâncias químicas ilícitas.

Creio que um breve histórico se faz necessário para que se entenda claramente o contexto em que Joana está inserida.

Breve Histórico

Joana é fruto do relacionamento de Dora e um namorado quando esta tinha 20 anos de idade. Dora e o namorado chegaram a morar juntos na casa deste por sete meses. Saiu da casa do namorado quando Joana já havia completado quatro meses e foi morar na casa de uma senhora que precisava ser cuidada no período da noite porque estava enferma. Logo após a mudança, Dora arrumou um emprego. O bebê ficava com a mesma senhora, que já havia se recuperado, e Dora só a via à noite, dormindo, quando chegava do trabalho.

Dora descobre-se grávida novamente, do mesmo namorado, quando Joana estava com oito meses de idade. Relata ter pressionado o namorado para assumir a ela e aos filhos e na impossibilidade deste, Dora separou-se. Após o nascimento do segundo filho chegou ainda a morar com um outro homem, mas depois de um ano e meio separou-se, pois segundo ela, este homem bebia muito e chegava em casa brigando com ela. Dora considerou que seus filhos não precisavam presenciar aquelas cenas, "porque faz mal pra criança ver estas coisas" (sic).

Dora decidiu então vir para São Paulo, já que morava numa pequena cidade do interior próxima da capital. No entanto, não tinha lugar para ficar, ainda mais com duas crianças, Joana com três anos e o irmão com um ano e meio. Dora foi morar numa pensão e os filhos foram para um abrigo e permaneceram institucionalizados por quatro anos, tendo passado por quatro diferentes lares.

Quatro anos após a entrada destas crianças no primeiro abrigo, Dora consegue retira-los e os leva para morar consigo e com o atual marido na pensão que moravam juntos. Dora estava grávida do terceiro filho, que hoje tem dois anos.

Um ano após a convivência familiar dos cinco membros da nova família, Dora procura atendimento psicológico para filha. Considerando o contexto, que foi exposto neste breve histórico, eu vejo Dora procurando ajuda e me perguntando "Quem é esta filha?".

Podemos passar agora à menina.

Terapia (1ª fase) - Observação e Conhecimento

Esta exposição foi dividida didaticamente em três momentos, para que o leitor possa entender melhor os diferentes momentos do processo analítico da criança. Não há nenhuma questão teórica envolvida na divisão dos momentos da terapia.

Esta primeira etapa durou três meses e meio e é correspondente ao primeiro semestre do ano de 2003, de maio a julho, quando ocorreram duas semanas de férias. Chamei este período da terapia de 'Observação e Conhecimento', pois foi o tempo necessário para que Joana pudesse confiar em mim e me solicitar para brincar e conversar. Foi um período tranqüilo e de estabelecimento da transferência.

Joana raramente falava comigo ou me solicitava para brincarmos juntas. Era sempre contida em suas brincadeiras e muitas vezes fazia o mesmo desenho três vezes. As interpretações eram baseadas na insuficiência da mãe e na ausência do pai biológico, que Joana não conhecia, mas idolatrava. Falou muitas vezes em como gostaria de ir até a cidade do pai e conhecê-lo.

A insuficiência materna passou a ser claramente presente nos assuntos que Joana trazia para as sessões. Numa delas chega a defender a sua estada no abrigo justificando que lá ela tinha amigos, fazia as coisas que gostava e ainda podia cuidar das crianças menores, porque as responsáveis não davam conta. É interessante este cuidado com as crianças menores e que obteve continuidade com a entrada de Joana no Centro de Jovens (CJ), no período da manhã.

Ainda neste período, Joana fez um desenho onde pude observar o quanto se sentia não amada e carregada de sentimentos ruins. A menina passou uma sessão inteira desenhando um monstro. Utilizou praticamente toda tinta preta, além de desenhar perfeitamente um rosto no desenho, mesmo este tendo como fundo o preto. Na sessão seguinte, quando abriu sua caixa e deparou-se com o desenho levou um susto grande, inclusive separando este desenho dos demais que já havia feito nas sessões anteriores. Trabalhamos nesta sessão o quanto ela sentia-se como um monstro, odiada e capaz de amedrontar as pessoas.

O momento seguinte da análise foi angustiante para Joana, pois entraríamos em férias. Nas três últimas sessões, ela passou a me pedir coisas da caixa para levar para casa. Eu dizia que aquela caixa era dela para ela brincar ali naquele espaço e que, quando voltássemos das férias, ela poderia brincar de novo com tudo aquilo. Porém, nenhuma interpretação fazia efeito; Joana não conseguia se acalmar. Duvidava de nosso vínculo e podemos relacionar este medo de me perder e de perder aquele espaço com o abandono sofrido quando pequena. Na última sessão, ela levou o giz de cera para casa dizendo que traria na primeira sessão após as férias. O giz de cera não voltou para a caixa.

A contratransferência era bastante forte já neste momento da terapia. Eu me angustiava bastante com os conteúdos que Joana ia me apresentando, justamente por não poder protege-la em seu meio e sentir-me com as mãos atadas. Nas supervisões, e em minha análise pessoal, pude trabalhar todas estas dificuldades.

Terapia (2ª fase) - Exploração de Conteúdos e Fantasias

O segundo momento da terapia é iniciado pelo retorno das férias e corresponde ao segundo semestre do ano de 2003, de agosto a dezembro. Este período é marcado por grandes turbulências. Logo no início do mês de agosto fui contatada pela coordenadora do CJ do qual Joana participa. A mesma relata que Joana é espancada pelo padrasto e que chega toda marcada para as atividades. Na terapia este fato não havia aparecido, pois além de não conversar comigo, Joana vinha com roupas de frio, que não me permitiam observar as marcas em seu corpo.

A estratégia utilizada para compreendermos melhor esta família e o porquê do bater até machucar foi a de oferecer um acompanhamento para esta mãe em orientação de pais. Optamos por este recurso, que era realizado por uma colega também psicóloga, ao invés de denunciarmos ou apoiarmos uma denúncia da coordenadora do CJ. Caso a denúncia fosse realizada, com muita certeza, Joana voltaria para um abrigo, o que consideramos extremamente desnecessário e desorganizador para a vida da menina, que se mostrou bastante preocupada e angustiada com esta possibilidade. Buscamos investir nesta família para que questões como o bater pudessem ser pensadas e não julgadas.

Além disso, neste momento do atendimento surgiu a hipótese de que Joana estivesse num caminho delinqüencial. A hipótese de uma tendência delinqüencial foi aventada pela equipe por causa de alguns furtos realizados por Joana em companhia do irmão. Foram roubados cento e cinqüenta reais da mãe e algumas bijuterias, dez reais na feira e houve o aparecimento de noventa reais, que Joana distribuiu para os colegas da classe. Estas histórias se apresentavam de maneira muito confusa e recortada. Para chegarmos a conclusão de qualquer uma delas, alguns meses se passaram sem que conseguíssemos compreender o porquê de cada uma, em que momento ocorreu, em que condições, quais as intenções de cada um etc. Daí, a preocupação da equipe em trabalhar com a família para que Dora não perdesse a guarda de Joana e, para que esta última não voltasse para um abrigo qualquer sem ter um acompanhamento e uma educação individualizada e mais próxima de suas questões psico-sócio-econômicas.

Neste momento da terapia, dois sonhos apareceram com um conteúdo muito angustiante. O primeiro era sobre ter sido enterrada viva em um cemitério. A mãe a procurava por toda a cidade, mas não a encontrava. Quem a encontrou foi o porteiro do cemitério. O segundo sonho era sobre um motoqueiro que levava um tiro e caía da moto. Ela o socorria, tirava o capacete, mas não conseguia tirar o capuz que ele usava. Porém, Joana conseguiu perceber que os olhos e os cabelos eram iguais aos seus e de sua mãe. Realmente mãe e filha são muito parecidas fisicamente.

Um outro fato foi importante no decorrer deste período. Joana conheceu o pai biológico e desenvolveu um ódio elevado por ele. Referiu apenas que o pai maltratou o irmão e ela não gostou. Nunca mais voltou a vê-lo ou a falar sobre o pai.

Chegamos ao final do semestre, as férias se aproximando, e Joana apenas brincava com o dominó. O jogo de damas e o pega-varetas foram também utilizados, mas com menor freqüência. Mal conversava comigo ou me olhava. Nas últimas sessões Joana relatou que andava escutando vozes. Não tomamos nenhuma providência imediatamente a este respeito, pois havia uma necessidade maior de esclarecermos o que eram estas vozes. O que nos levou a este pensamento foi justamente estarmos no período que antecedia as férias de final de ano. Joana já havia inventado outras urgências no período anterior às férias do meio do ano.

Um último acontecimento vem para selar o semestre. No último dia de atendimento do ano de 2003 (23 de dezembro), Joana chega toda marcada na sessão e diz que foi espancada pelo padrasto. A mãe e o padrasto foram chamados para uma reunião no consultório da supervisora deste caso. Mais uma vez, a importância de não bater foi ressaltada e outros pontos, de menor importância foram conversados.

Terapia (3ª fase) - Retomada do Trabalho (2004)

A terceira fase da terapia inicia-se no primeiro semestre de 2004. Os atendimentos não haviam recomeçado quando a coordenadora da escola contatou-me para explicitar uma suspeita de abuso sexual. Joana teria dito a uma professora muito próxima que um tio, irmão da mãe, havia abusado sexualmente dela.

A coordenadora foi aconselhada a chamar à mãe e contar a esta o que havia acontecido. A mãe entrou em contato com a equipe e foi decidido que Joana faria um exame ginecológico para comprovar o fato. Dois dias depois, o abuso foi confirmado tanto pelo exame ginecológico quanto pelo agressor, que foi até o hospital e confirmou para Dora o que havia feito.

A partir da confirmação de abuso, Joana permanece internada no hospital em que realizou os exames, por vinte dias, pois um processo legal é aberto. É interessante observar como a instituição fez o papel que seria de um abrigo, mantendo a menina internada até que o juiz determinasse qual seria sua sentença. A decisão do juiz poderia ser favorável, Joana iria para casa, ou desfavorável, Joana seria conduzida a um abrigo. Creio não ser preciso dizer muito sobre a irritação, a preocupação e a angústia da menina no período de sua internação no hospital. Obviamente, Joana pôde reviver os longos quatro anos de sua vida internada em abrigos, longe de sua mãe. Recentemente pudemos começar a trabalhar esta experiência no hospital e a similaridade com o período em que esteve internada em abrigos.

Para finalizar, após sua ida para casa, o trabalho na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic", da PUC-SP foi retomado. Os atendimentos de Joana acontecem duas vezes por semana.

Reações da Mãe

Para finalizar este estudo de caso é interessante pensar algumas posturas da mãe no decorrer do processo analítico. Apresento a seguir dois momentos.

Desde o início do processo analítico, a mãe mostrou-se sempre disponível a qualquer solicitação da terapeuta. Dizia que se fosse necessário Joana ir à Clínica para ser atendida todos os dias da semana, isto aconteceria. Ressaltava que sua filha precisava de ajuda e que ela já estava cansada e não sabia mais o que fazer. O que podemos questionar era se ela estava implicada no processo ou se era mais uma tentativa de livrar-se dos cuidados da filha, que ela já não mais agüentava. Sua postura mudou quando a orientação de pais teve início. Dora está muito mais próxima de sua filha e hoje ela também faz terapia.

Um segundo momento de bastante importância foi quando Dora soube da suspeita de abuso sexual, ainda na escola. Frente a suspeita do abuso sexual, Dora teve duas reações. A primeira foi a de negar o fato dizendo que tinha certeza que aquilo não podia ter acontecido, já que Joana não ficava sozinha em casa e que seu irmão jamais faria qualquer coisa neste sentido, pois eles eram muito próximos. Num segundo momento, Dora queixa-se que não agüenta mais esta filha que lhe traz tantos problemas e que seria melhor abandonar mesmo, assim não teria mais tantos problemas.

Estes sentimentos todos puderam ser trabalhados com a terapeuta que fazia a orientação de pais com Dora. Após a confirmação do abuso, Dora pôde entrar em contato com seu sofrimento, o sofrimento de sua filha e acolhê-la.

Hoje, apesar de trabalhar muito para sustentar a casa e os filhos, Dora está mais próxima de sua filha. Joana consegue inclusive solicitar a mãe para lhe contar algum fato ou para pedir-lhe que compre o que deseja.