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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



8. Um Caso de Enurese Noturna

Camila tem 10 anos, comecei a atendê-la no último ano da faculdade, em abril de 2002, quando tinha 8 anos. Foi trazida pela mãe porque até essa idade ainda usava fraldas para dormir, pois não conseguia segurar o xixi e nem acordava para ir ao banheiro. Como a mãe trabalhava cedo e o dia todo não tinha como ficar acordando durante a noite para levá-la ao banheiro e nem queria ficar perdendo tempo lavando roupa de cama todos os dias, por isso o uso da fralda até agora. Os pais de Camila estão separados desde seus dois anos e meio e sua mãe até hoje não teve nenhum outro namorado. Ela vê o pai a cada duas semanas e nas férias passa quinze dias com ele. Quem coloca sua fralda é a mãe, ou a avó quando dorme na casa do pai, pois diz ter vergonha que o pai coloque por ser homem.

A primeira impressão que tenho é de que Camila é menor do que a maioria das crianças da sua idade, mas, conhecendo sua mãe e sua avó materna, vejo que também são pessoas baixas, porém, a impressão de que ela seria um "bebê" ainda permanece, como permanece a fralda.

Camila não passou por um psicodiagnóstico antes de ser encaminhada para a psicoterapia, ela veio direto da triagem. Por esse motivo, foi decidido em supervisão que sua mãe precisaria começar a ser atendida antes para que conseguíssemos mantê-la no tratamento. Sentimos que se a mãe não percebesse realmente a necessidade de um atendimento para Camila ela a tiraria em pouco tempo. Isso foi feito e somente um mês depois iniciei o atendimento dela. Penso que essa estratégia deu um bom resultado, pois, apesar de sua mãe ter parado seu próprio atendimento e recomeçado por duas vezes, Camila continua comigo até hoje, indo para o seu terceiro ano de psicoterapia.

Ao pensar sobre esse caso fico imaginando o que eu poderia escrever. Ela foi minha primeira paciente e, evidentemente foi com ela que aprendi muitas coisas e errei bastante também. A insegurança é enorme e o medo de prejudicar o paciente que confia em você é maior ainda. Mas com o tempo percebi que meus erros me fizeram crescer.

Acho que o mais importante que aprendi e o que me deixou mais tranqüila foi que aquilo que não foi trabalhado num momento inicial vai voltar, mesmo que seja de uma forma diferente, até que seja dado um destino a ele. Portanto, aprendi a não me desesperar quando deixava de interpretar algo.

Esse caso está se encaminhando para a alta e isso é um outro ponto importante. Penso que não seja muito comum numa clínica escola um profissional conseguir levar um caso até um possível final. Falo em possível porque imagino que uma menina de 10 anos, que está entrando na adolescência e há pouco tirou a fralda, vá passar por questões delicadas e um pouco complicadas. Porém, com o desenrolar do seu atendimento houve mudanças na sua forma de se colocar no mundo, de reivindicar os seus desejos e seus interesses foram se modificando. O mais importante foi ela começar a se responsabilizar pelos seus atos, principalmente pelo xixi que fazia na cama.

Poderia descrever esse caso através de diferentes assuntos, com diferentes enfoques: o meu, o dela ou o nosso. Nesse momento escolhi pensar pelo dela, isto é, pretendo falar sobre as diferentes funções da enurese para essa menina e como ela foi se modificando ao longo da terapia. Mas falar somente das funções da enurese seria reduzir a paciente ao seu sintoma, portanto, outras questões importantes também serão abordadas.

Não foi realizada uma anamnese detalhada com a mãe de Camila, portanto as informações que possuo foram retiradas da triagem e de uma primeira conversa que outra terapeuta teve com a mãe. Por isso, para pensar sobre o seu caso utilizei essas poucas informações e manifestações da paciente na terapia.

O parto de Camila foi uma cesárea programada, pela qual a mãe se decidiu ao invés do parto normal. Disse a mãe que queria que o bebê nascesse logo, pois como havia engordado 13 quilos durante a gestação, quase não conseguia se mover, além de ter sido necessário que ficasse de repouso para segurar o bebê porque teve perda de líquido amniótico.

No início da terapia, eu sempre notei que Camila olhava muito para o relógio e, apesar de negar quando perguntada, sempre parecia que queria que a sessão acabasse logo. Porém, depois de um tempo seu comportamento mudou e ela não olhava mais no relógio e ficava espantada quando eu dizia que havia acabado. Com o passar do tempo ela demorava mais para guardar suas coisas e enrolava para ir embora.

É possível comparar essas mudanças de atitude na terapia com o que ocorreu na gestação. No início foi preciso segurar esse bebê que estava incomodado lá dentro e queria sair logo, o ambiente (útero da mãe e sala de terapia) não era acolhedor para ela, não era considerado seguro. Mas depois ela passou a se sentir bem, tendo vontade de permanecer lá por mais tempo, o que a mãe não possibilitou ao fazer uma cesárea programada, sua mãe não esperou que ela estivesse pronta para sair. Agora, Camila repete na terapia à vontade de ficar por mais tempo num lugar que a faz se sentir segura.

Durante a maioria das sessões realizadas, Camila pedia que eu fizesse lições (de matemática, português) que ela passava na lousa. Essa era uma maneira dela se defender das angústias que surgiam naquela situação, era uma forma obsessiva de defesa contra a ansiedade. Esse fato me remete à situação relatada pela mãe de que, com poucos meses, Camila ficava o tempo todo utilizando seu seio como "chuquinha". Fazendo isso, sua angústia era mitigada e também controlava a mãe.

Comigo, na terapia, também era uma forma de controle, ou seja, eu fazia o que ela queria. E mandando que eu fizesse essas lições ela não precisaria se confrontar com o que poderia vir dela mesma. O xixi é algo que vinha dela, mas pelo qual ela não podia (ou não conseguia) se responsabilizar.

Durante as sessões ela faz comigo o mesmo que sua mãe faz com ela, se antecipando a mim, fazendo as coisas por mim. Ela não suporta esperar que eu faça as coisas sozinha, do mesmo modo que sua mãe não suporta esperar que ela aprenda e faça algo sozinha. Na primeira sessão, ela contou que usava fralda durante a noite e mais algumas coisas porque sua mãe havia mandado e depois disso passou várias sessões brincando de escola. Ela me passava lições, eu tinha que fazê-las e ela corrigia.

Percebi que ela me colocava no seu lugar de filha que era dependente (fazia muita coisa por mim) e devia somente obedecer. Sua mãe sempre se antecipou a ela, tanto que uma vez chegou a reclamar pra mim que a Camila não queria mais vestir as roupas escolhidas pela mãe, que estava muito rebelde. Penso que Camila sempre foi "rebelde" porque precisava ser, senão a mãe não a deixaria ser. Não tirando sua fralda ela não pôde aprender a confiar na mãe e nem em si mesma. Não pode também aprender a se controlar, então é dessa forma descontrolada que Camila tenta ser ela mesma, passando por cima da mãe.

No começo eu não interpretei a brincadeira de escola e então passamos muito tempo nesses papéis, eu sendo ela e ela sendo a professora/mãe. Quando passei a interpretar e me revoltei de estar presa nesse papel que ela me deu, ela mudou sua atitude na sessão e fora dela. Como eu consegui sair daquele lugar de dependência ela viu que poderia agir de uma maneira diferente.

Essa brincadeira de escola serviu para ela como uma defesa contra conteúdos angustiantes que poderiam surgir, brincando disso ela controlava o que acontecia na sessão, assim como controla sua mãe com o xixi. Aqui seria importante a entrada de um terceiro nessa relação que cortasse esse controle, que tirasse a mãe dessa posição, que não permitisse que a mãe cedesse tanto às vontades da filha.

Camila é tão poderosa porque não foi castrada. No momento em que passaria pelo Complexo de Édipo e que o Superego se instalaria não houve um terceiro, um pai castrador que lhe tirasse a ilusão de que tinha a mãe só pra ela. E isso acabou se confirmando, pois todos esses anos ela não teve que dividir a mãe com ninguém, não precisou se ver diante dessa falta. Aliás, nenhuma das duas foi confrontada com a falta, elas se completavam e por vezes se confundiam.

Porém, essa mãe nunca conseguiu ser mãe de uma criança ávida por desenvolvimento, ela só sabia ser mãe de um bebê. As necessidades de Camila foram se modificando e ela (mãe) continuou suprindo-a somente naquilo que conseguia. Houve falha na adaptação da maternagem, ninguém pôde se ocupar dessa criança porque havia problemas "maiores" nas vidas desses pais naquele momento.

Em praticamente todas as sessões ela solicitou que eu a levasse ao banheiro na hora de sair. Para ela o banheiro é onde ela despeja suas angústias, é pelo xixi que ela coloca para fora tudo que não agüenta dentro dela, tudo que a angustia. A enurese é uma forma de liberação dos impulsos agressivos. Esses impulsos são ataques ao objeto interno (mãe boa internalizada) que ela não suporta dentro dela, não suporta entrar em contato com seus aspectos destrutivos, e coloca para fora.

Ela usa o xixi para escapar das coisas deliberadamente, conscientemente, para controle, para não crescer e assim continuar controlando a mãe. Mas também, através dele, coloca sua hostilidade contra a mãe, pois seu sintoma é uma forma de atender um apelo inconsciente desta, um apelo para que ela continue sempre bebê, não cresça, porque dessa forma a mãe não precisaria se confrontar com outra pessoa que também pode viver independentemente dela (como o marido que foi embora).

Depois que eu mudei de atitude nas sessões, ela passou a descarregar sua raiva ali mesmo. Ela colocou para mim sua ansiedade persecutória, mas fez isso deslocando para objetos externos, isto é, falava que não tinha estragado a parede, e que bichos iriam sair do teto. Dessa forma ela colocou no mundo externo algo que está sentindo dentro dela, o que achou um correspondente no mundo, pois ela é um depositário dos problemas da família, vai mal na escola, briga, faz xixi na cama.

Depois de Camila conseguir diminuir suas defesas e liberar sua imaginação, é através da dramatização que eu tive maior acesso a ela. Com esse recurso ela conseguiu se expor mais, falar sobre suas questões. Isto é, foi quando começamos a brincar de teatrinho que ela mais "falou" sobre si e eu "falei" com ela também nessa linguagem. Dessa forma ela pôde se expressar e penso que se eu tivesse começado a interpretar com uma outra linguagem ela teria criado um outro tipo de defesa.

Quando se começa a tirar a fralda de um bebê, ele já está apto fisiologicamente para aprender a controlar os esfíncteres, são os pais, principalmente a mãe, que vão ensinar esse controle ao filho. Camila nasceu com um problema na bexiga, tomou vários medicamentos e antes de sua mãe procurar atendimento na clínica ela foi submetida a vários exames neurológicos que não indicaram problema algum que interferisse no controle esfincteriano.

Ela nunca tirou a fralda da noite porque sua mãe nunca confiou que ela pudesse controlar o xixi. Com a mãe não confiando nela, ela também não conseguiu aprender a confiar em si mesma. Dizia que seu xixi era apressado, que ela não conseguia acordar durante a noite para ir ao banheiro, não se responsabilizando pelos seus atos e pelo seu próprio corpo.

É importante lembrar que o sintoma da criança precisa ser olhado como fazendo parte de uma configuração familiar, o que deve nos remeter a toda a história familiar do paciente para que possamos compreender o significado do seu sintoma dentro daquela família especificamente.

Cordovil conceitua a enurese da seguinte forma, "enurese é a falta de controle da emissão de urina, em idade compatível (3-4 anos), sem evidência de lesão orgânica, involuntária, inconsciente, sem a sensação da necessidade de urinar" (CORDOVIL apud OLIVEIRA, 1987, p.4).

Adrados (1970, p.124), afirma que a enurese "é quase sempre sinal de deficiente adaptação emocional, perante as dificuldades ambientes, que forçam a criança a regredir, ansiosamente, para as primeiras fases da infância. Insegurança e problemas na esfera afetiva, junto à imaturidade geral, são as causas mais freqüentes [desse problema]".

Uma criança pode começar a tirar a fralda quando tiver mais ou menos dois anos, exatamente no período em que os pais de Camila se separaram, o que poderia demonstrar uma grande dificuldade em lidar com esse fato. Evidentemente essa foi uma fase complicada para a mãe dela que não conseguiu se ocupar das urgências da filha, já que não conseguia lidar com as suas próprias.

O controle dos esfíncteres demonstra a capacidade que a criança adquiriu de controlar suas pulsões e seus desejos, podendo esperar que eles sejam satisfeitos num outro momento. Camila não consegue esperar para ser satisfeita em outro momento, tudo para ela tem que ser resolvido na hora, por isso briga tanto com a mãe.

E é nessa mesma época (mais ou menos aos dois anos e meio) que a instalação do superego culmina, porém Camila não tinha presente em sua vida uma figura paterna que impusesse a lei sobre ela, por esse motivo é muito mandona e muitas vezes desrespeita sua mãe.

Ao fazer xixi na cama ela só tem compromisso com o princípio do prazer, isto é, a vontade vem, ela nem se dá conta conscientemente e faz. Não houve interiorização da lei (como dito anteriormente) que a impediria de fazer isso nessa hora.

O controle esfincteriano marca de modo bem definido a internalização da noção de limites e a repressão e sublimação das tendências autodestrutivas. No início do seu atendimento pude perceber como faltava essa noção pra ela, pois era ela quem queria mandar e muitas vezes se mostra muito mais forte que sua mãe, da mesma forma que se mostrava para mim. Camila não conseguia controlar seus impulsos e a fralda era a permissão dada pela própria mãe de que ela poderia fazer xixi lá, que ela poderia satisfazer seus desejos daquela forma.

Durante o sono as necessidades e desejos continuam querendo satisfação, há uma pressão para agir, para providenciar satisfação. O sonho é a solução de compromisso, é uma realização alucinatória do desejo, mas quando o estímulo é muito forte a pessoa acorda e levanta para fazer xixi. Camila não conseguia fazer isso, pois sua mãe não se ocupava dela, não tinha tempo para ajudá-la a crescer e por isso desejava que ela continuasse sendo um bebê. E se ela não cresce a mãe também não precisa se deparar com o buraco que há na sua vida, não precisa arrumar um namorado, vai ter sempre alguém pra cuidar.

Desde a separação não houve outra pessoa em sua vida que não fosse a Camila, ela não se relacionou com nenhum homem e não teve nenhum outro interesse que a fizesse se separar um pouco da filha. Mas é interessante como tudo isso é ambivalente, pois ao mesmo tempo em que só tinha olhos para sua filha, mesmo que a mantendo como um bebê eternamente, ela não conseguia se ocupar completamente dela, não conseguia dar suporte para o seu crescimento.

Quando Camila tinha cinco anos, sua mãe tirou a fralda por um tempo, mas isso implicava em ter que levantar durante a noite para colocá-la fazer xixi e lavar os lençóis que sujava, o que despendia tempo. A mãe acabou desistindo, pois ficava muito cansada e tinha que trabalhar no dia seguinte, preferindo deixá-la com fralda. Isso demonstra uma falta de capacidade da mãe em se ocupar das necessidades da filha o que, provavelmente, foi desencadeado pela ralação dela com seu marido. Uma relação conturbada desde o começo da gestação (ou até antes) na qual ela não foi acolhida e amparada por ele. Ela não pôde se dedicar completamente ao seu bebê porque precisava se preocupar com outras coisas também.

Através da enurese, Camila expressa o estado angustiante pelo qual está passando e foge dessa dinâmica que a incomoda para um estado de vida mais elementar, como um bebê que busca a proteção da mãe, que não tem outra forma de se livrar do que não lhe agrada.

Além disso, este evento não diz respeito somente à criança, ele diz respeito ao fato de que estes recursos psicológicos não são totalmente resolvidos na sua mãe, ela tem uma dificuldade muito grande de lidar com as suas pulsões e desejos, seus conteúdos do mundo interno. Por isso não consegue ensinar esse controle à sua filha.

É difícil influenciar diretamente o ambiente da criança, é mais fácil auxiliá-la a modificar seu próprio comportamento, o que a capacitará "a adaptar-se melhor a um ambiente ainda que difícil, dotando-a de maior resistência para enfrentar as tensões que lhe sejam impostas" (Klein, 1981, p.116), além de ela poder influenciar o seu próprio ambiente com sua nova maneira de agir. É o que podemos verificar em relação à Camila, pois ela mostra que está mais independente, o que afeta a mãe e todo o seu ambiente. Por esse motivo foi indicado que a mãe iniciasse um processo psicoterapêutico antes da filha o que aconteceu, mas ela não prosseguiu no seu atendimento.

Após os períodos de férias Camila sempre recomeçava as sessões me dando algum tipo de lição. Penso que era uma forma dela se situar, se acostumar com a situação novamente. Ela começa controlando o ambiente para que ele não fique persecutório, para abaixar sua angústia.

No início do segundo ano de atendimento ela voltou mostrando para mim como tinha crescido. Durante uma sessão em que estávamos organizando e limpando sua caixa lúdica ela estava juntando todos os pedaços de massinha para jogar fora e no meio delas viu que estava o bebê da família de bonecos. Observou que quase tinha jogado fora. Fiquei encarregada de separar e guardar a família quando dei por falta do bebê, perguntei a ela que foi procurar e o encontrou jogado no lixo junto com as massinhas. Quando eu interpretei que ela tinha jogado fora o bebê que havia dentro dela, que agora ela poderia crescer ela sorriu e concordou. Ela vai caminhando para a independência, mas nas poucas brincadeiras que faz eu ainda sou uma irmã mais velha que ainda precisa cuidar um pouco dela.

Nesse segundo ano de atendimento trabalhamos questões que ela trazia a cerca do seu crescimento. Dúvidas, inquietações, novos interesses por meninos, roupas, cuidados com o corpo. Também se modificou nossa forma de trabalhar, pois ela conversava mais, falava de diversas coisas e brincava muito menos.

Em um site na internet que dá dicas sobre alguns problemas comportamentais das crianças encontrei a seguinte definição sobre o modo de se trabalhar com uma criança enurética:

"Se trabalharmos no sentido de encarar a enurese como uma forma de expressão de sentimentos sufocados, devemos ajudar a criança a manifestar esses sentimentos.

Toda a família deve ser envolvida nesse processo para que as relações, principalmente com a criança em questão sejam fortalecidas, o próximo passo é o de responsabilizá-la pela sua enurese (este é um requisito importante para cessar o problema); através de técnicas que permitam a criança conhecer o seu próprio corpo e, a partir dessa tomada de consciência conseguir mudar o comportamento".

Winnicott (1999), fala dessa capacidade de assumir responsabilidade pelos seus sentimentos e idéias que todo indivíduo deve desenvolver. E afirma que uma pessoa saudável "não precisa ficar usando o tempo todo a técnica da projeção para lidar com seus impulsos e pensamentos destrutivos" (p.71). E, segundo Aberastury (1996), "as funções e produtos do intestino e da bexiga são utilizadas como veículos de impulsos hostis. A enurese seria, então, uma tentativa de descarga desses impulsos" (p.157). Camila não assumia a autoria dos seus impulsos, ela simplesmente os despejava junto com o xixi e deixava que a mãe se responsabilizasse por eles.

Sempre foi trabalhado com Camila o fato dela limpar o que sujou, de arcar com as conseqüências do que fazia. Isso foi feito principalmente quando ela resolvia pintar de tinta a parede da sala. Não deixávamos nada para as faxineiras limparem e era usado um pedaço da sua própria sessão para desfazer e limpar o que tinha feito. Era um modo também de lhe mostrar que precisava arcar com os problemas que tinha ao fazer xixi na cama, que não era sua mãe quem deveria ser castigada. Ela precisava também se apropriar das suas coisas e deixá-la consigo, não despejar no mundo o que não consegue controlar. Porém, isso foi trabalhado depois que sua mãe passou um período se ocupando dela, levantando durante a noite, lavando lençóis sujos.

Segundo Danielski (1998), a enurese noturna seria um "defeito no desenvolvimento da personalidade", isto é, a criança por não ter conseguido estabelecer um laço afetivo muito forte com a mãe não conseguiu alcançar o necessário controle de esfíncter. Isso pelo fato de que não fazer xixi na cama seria para satisfazer os desejos da mãe, desejos de que essa criança cresça e se torne independente dos seus cuidados, mas não era isso que a mãe de Camila desejava, ela queria sim um eterno bebê dependente dela para sempre.

O fato da mãe nunca ter conseguido tirar a fralda de Camila até os 8 anos mostra uma falta de confiança na filha e, conseqüentemente, ela não aprendeu a confiar em si mesma nem no mundo externo, pois, segundo Winnicott, a confiança nasce da experiência de fidedignidade da mãe que deveria estar com ela sempre que precisasse, é um objeto não-eu mas que pertence à criança. A mãe não pode proporcionar isso a ela porque no momento em que precisava iniciar a retirada da fralda ela estava muito ocupada e preocupada com o seu divórcio.

Mas após todas essas mudanças percebo que o fato dela crescer e ser independente assusta a mãe e o resto da família, tanto que os assustou quando falei que daria alta. A avó disse que o xixi não havia parado. A informação na qual me baseei para dar alta foi dada um pouco antes do final de 2003, cheguei a falar para Camila que ela teria alta.

Acabei não dando alta na data prevista, pois fui pega desprevenida e como terapeuta iniciante não soube o que fazer. Mas o modo como as sessões foram se encaminhando indica que poderei dar alta dentro em breve.

No início do atendimento com Camila eu não conversei com a sua mãe, foi do meio para o final do ano que comecei a conversar com ela, sempre pelo telefone. Nessas conversas pude pedir que ela se ocupasse mais da filha, que ao invés de colocar a fralda que pudesse levantar durante a noite para levá-la ao banheiro ou que agüentasse lavar seu lençol. Quando Camila percebeu que a mãe estava se ocupando dela, cuidando dela e passou a mudar de atitude, comecei a investigar o porquê dela não conseguir levantar sozinha à noite.

Agora eu podia questioná-la sobre a enurese e acabei descobrindo que havia um certo medo do escuro que a impedia também de ir sozinha ao banheiro durante a noite. Ela me falou isso no começo do ano de 2003, mas somente no início de 2004 ela conseguiu falar para sua mãe sobre esse medo e pedir um abajur para colocar no quarto, coisa que estávamos conversando desde que soube do medo de escuro.

Segundo relato da mãe, ela faz mais xixi na cama quando está chegando perto do dia de passar o fim de semana com o pai. Fato que ela mesma complementou dizendo que não queria mais ter que passar alguns dias com ele e que havia pedido para sua tia (advogada) entrar com o pedido para ela falar com o juiz e não precisar mais ir.

O que passou a acontecer é que todas as noites a mãe de Camila acorda e a coloca para fazer xixi umas duas vezes, diante disso pedi que ela não levantasse mais, que agüentasse agora lavar o lençol de vez em quando para verificarmos se o abajur no quarto ajuda-a a levantar ou se sentir mais segura.

No primeiro dia que ficou sem levantar, Camila fez xixi na cama a primeira vez, e outras duas levantou depois de fazer um pouquinho. Nos outros dias não levantou nenhuma vez e também não fez xixi. Há duas semanas sua mãe não a levanta mais durante a noite, desde então ela tem acordado sozinha para ir ao banheiro quando sente vontade.

Concluindo, penso que seria possível definir as diferentes funções da enurese para Camila da seguinte forma: no início era uma forma de atender a um apelo inconsciente da mãe que desejava que a filha não crescesse; quando foi ficando mais velha passou a ser um modo de comunicar que estava precisando de atenção, de que queria que a mãe se ocupasse dela; e, finalmente, agora há uma volta esporádica do xixi porque ela ainda não consegue se desgrudar totalmente da mãe, não deixa o pai entrar na reação e deixa a mãe preocupada de que o pai a maltrata. O xixi ainda volta quando tem que enfrentar situações mais complicadas: não consegue conversar com o pai, tem medo dele, provavelmente medo de que ele a tire da mãe de vez.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ABERASTURY, Arminda. Abordagens à Psicanálise de Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996

ADRADOS, Isabel. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada. v.22, n.3, jul/set, 1970, p.123-129

DANIELSKI, Vanderlei. Enurese Noturna, Por que a criança faz xixi na cama? São Paulo: Editora Ave-Maria, 1998

KLEIN, Melanie. Psicanálise da Criança. São Paulo: Mestre Jou, 1981

OLIVEIRA, Cleonides M. O mundo da criança enurética. PUC-SP, DM, 1987

WINNICOTT, Donald D. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999

Site na internet: www.filhosonline.com.br/comportamento6.asp (acesso em 15/03/2004)