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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


3. História de Vida Como Processo de Construção do Sujeito da Aprendizagem

Historiar-se é quase sinônimo de aprender,
pois, sem esse sujeito ativo e autor que significa o mundo,
significando-se nele,
a aprendizagem irá converter-se na memória das máquinas,
ou seja, em uma tentativa de cópia (Alicia Fernández, 2001:68).


No campo da Psicologia, a história de vida é uma peça importante do questionário de anamnese, preenchido no contexto clínico durante o diagnóstico de um paciente, mas é também um método de pesquisa qualitativo amplamente empregado e reconhecido, tanto dentro como fora da clínica; na Psicanálise, a ressignificação da história de vida do paciente é praticamente coincidente com seu processo de tratamento; na área de Educação, a história de vida é um método de pesquisa qualitativo, importado das Ciências Humanas e Sociais há não muito tempo - década de 70 em diante. Mais recentemente, por intermédio de contribuições de autores tais como Antônio Nóvoa (1992) e Pierre Dominicé (1990) , esse método tem sido empregado para fins, não só de pesquisa, mas também de formação de educadores.

Na Psicopedagogia, a história de vida compartilha com a Psicologia, a Educação e a Psicanálise usos semelhantes: é uma peça importante da investigação diagnóstica do paciente portador de problema de aprendizagem, um método de pesquisa qualitativo freqüentemente empregado, um instrumento de pesquisa e de formação do psicopedagogo e pode constituir-se em meio a partir do qual se realiza o tratamento psicopedagógico.

É nesta perspectiva que se situa nosso trabalho: o emprego da história de vida como um instrumento ou recurso terapêutico.

Nosso objetivo é comunicar, em linhas gerais, a condução de um atendimento no qual foi empregado a história de vida como instrumento psicopedagógico-clínico, e justificar teoricamente essa prática.

Inicialmente, apresentaremos o contexto curricular onde se insere a proposta de atendimento psicopedagógico-clínico a universitários - o Curso de Especialização, pós-graduação lato sensu da PUC-SP - COGEAE . Em seguida, a fim de delimitar o âmbito de nossa intervenção clínica, explicitaremos algumas questões ilustrativas de preocupações pertinentes ao campo da Psicopedagogia, de modo a extrair conclusões sobre essa área de conhecimento e de intervenção. Por fim, apresentaremos uma síntese do diagnóstico psicopedagógico de uma estudante universitária, e as principais etapas de seu tratamento, até o momento em que passamos a fazer uso da história de vida como um instrumento psicopedagógico-clínico.

O contexto curricular do Estágio Supervisionado em Psicopedagogia

O Curso de Psicopedagogia da PUC-SP é um curso de Especialização (pós-graduação lato sensu), da Faculdade de Educação da PUC-SP (Departamentos de Tecnologia e de Fundamentos da Educação), administrado financeiramente pela COGEAE. Seu corpo docente inclui professores de diferentes Faculdades da PUC-SP: Educação, Psicologia, Fonoaudiologia, além de professores-especialistas convidados. É um curso de 525 horas de duração, dedicadas a disciplinas básicas e específicas, estágio supervisionado e elaboração de monografia.

O Estágio Supervisionado do Curso de Psicopedagogia, realizado na Clínica "Ana Maria Poppovic" , tem-se voltado predominantemente para o atendimento a crianças e adolescentes. A partir de 2000, iniciamos um trabalho psicopedagógico com adultos universitários. É sobre este trabalho, efetuado na Clínica, como parte integrante da grade curricular do Curso de Psicopedagogia da PUC-SP, que discorreremos aqui.

Os dados que apresentaremos provêm de um atendimento realizado por alunos da Especialização em Psicopedagogia, durante o período de 1 ano e meio (3 semestres letivos). No primeiro semestre (de agosto a dezembro de 2002) as estagiárias realizaram o diagnóstico psicopedagógico da paciente. No 2o e 3º semestres (ano de 2003), as estagiárias (outra dupla) realizaram o atendimento psicopedagógico-clínico dessa paciente. Foi nesta ocasião que se mostrou oportuno o uso da história de vida como um instrumento útil ao tratamento psicopedagógico. Antes, porém, é preciso explicitar o que estamos entendendo por Psicopedagogia e por "Atendimento psicopedagógico-clínico a estudantes universitários".

A Psicopedagogia como área de conhecimento e de intervenção

Existem várias maneiras de se pensar a Psicopedagogia, assim como existem várias maneiras de se pensar a Psicologia e a Pedagogia ou Ciência da Educação. Não é o caso, aqui, de discorrer sobre essas diferentes visões. Limitar-nos-emos a situar a abordagem teórico-metodológica que fundamenta o trabalho psicopedagógico-clínico que realizamos e as atividades de Estágio Supervisionado em Psicopedagogia, no atendimento acima referido.

Entendemos a Psicopedagogia como a área do conhecimento/intervenção que tem o processo de aprendizagem como seu foco de interesse.

· Como o sujeito aprende? Ou: Qual a sua "modalidade de aprendizagem"?
· Como aprendeu a aprender? Ou: Como se construiu como um sujeito da aprendizagem?
· O que significam os objetos de conhecimento para esse sujeito: um obstáculo a ser ultrapassado? Um enigma a ser resolvido? Um jogo a ser ganho?
· O que significam, para esse sujeito, os meios que veiculam o conhecimento (professores, textos, mídia etc.): fontes que não podem ser contestadas? Fontes desacreditadas? Fontes idealizadas?
· Quais as condições orgânicas, psicomotoras, cognitivo-intelectuais, simbólico-emocionais, educacionais, culturais, etc. que o sujeito dispõe para aprender?
· Quais os obstáculos que se interpõem às possibilidades de aprendizagem do sujeito?

Enfim, essas são apenas algumas perguntas que ilustram as preocupações que consideramos pertinentes ao campo da Psicopedagogia.

Para lidar com indagações como essas, pensamos que a Psicopedagogia é necessariamente uma área de conhecimento/intervenção de caráter interdisciplinar, isto é, o seu objeto de estudo - a aprendizagem e suas vicissitudes, ou melhor, a relação do sujeito com o conhecimento - pressupõe a contribuição de diferentes disciplinas (a Psicologia, a Pedagogia, a Psicanálise, a Neuropsicologia, a Linguística, etc.), porém não se reduz a nenhuma delas, isoladamente.

Atendimento psicopedagógico-clínico a estudantes universitários

Referimo-nos a um atendimento psicopedagógico-clínico a estudantes universitários. O que isto quer dizer?

Fazer Psicopedagogia, neste caso, é exercitar um modo de olhar e de escutar o sujeito que aprende/conhece segundo uma tríplice perspectiva: a cognitivo-intelectual, simbólico-emocional e acadêmico-pedagógica. E fazer um atendimento psicopedagógico-clínico significa lidar com a especificidade de cada queixa/problema de aprendizagem, com a singularidade do sujeito do conhecimento, com o caráter inédito do campo relacional construído pela dupla de psicopedagogo/paciente e com o sofrimento psíquico do paciente. Baseamo-nos em Freud e Piaget como referências teóricas principais. No campo da Psicopedagogia, temos encontrado na obra de Sara Pain e, especialmente, na de Alicia Fernández, conceitos e contribuições relevantes para a elaboração de nossas construções teórico-metodológicas.

Para explicitar o modo como trabalhamos psicopedagogicamente a partir da história de vida de um paciente, discorreremos brevemente sobre um dos nossos atendimentos. Restringir-nos-emos a relatar apenas os dados essenciais do trabalho já realizado, a fim de melhor explicitar a razão e o sentido do emprego que fizemos desse instrumento.

Atendimento no qual foi empregado a história de vida como instrumento terapêutico.

Diagnóstico (2002)

Dados de identificação:

LIA , 21 anos, solteira, 1o ano de Pedagogia, cursando uma universidade paulista de renome, 3ª filha (dois irmãos mais velhos) de um casal, ambos profissionais liberais, com formação universitária.

Queixa:

Dificuldades para realizar tarefas solicitadas pelos professores, na universidade:

· Para compreender/interpretar textos indicados pelos professores;
· Para resumi-los ("não encontra palavras semelhantes") ;
· Para entregar os trabalhos nos prazos estipulados;
· Para escrever: troca letras e fica muito irritada quando se vê em dúvida quanto ao emprego de s/ss, z, ç;
· Para perguntar, quando tem dúvidas, pois teme ser ridicularizada pelos colegas;
· Para se relacionar com colegas (trabalho em grupo) e com professores. Sente que não tem nada a oferecer.

Avaliação psicopedagógica

Múltiplas dificuldades:

· Cognitivas - nível de desenvolvimento intelectual em transição do pré-operatório para o pensamento operatório concreto (avaliado a partir das provas operatórias piagetianas). Os resultados apresentados nas provas de classificação (mudança de critério-dicotomia; intersecção de classes, quantificação da inclusão de classes) são sugestivos de um pensamento intuitivo global (4/5 anos). Os resultados obtidos nas provas de conservação (conjuntos discretos de elementos, de líquido, da quantidade de matéria) sugerem oscilação entre o pensamento pré-operatório e operatório concreto.
· Dificuldade para criar, imaginar, a partir de situações propostas. Fica presa ao objeto, descreve-o, mas não o transforma (hipo-assimilação). Dificuldade para entrar em contato com os objetos novos e deixar-se modificar por eles (hipo-acomodação). Uso estereotipado dos mecanismos de assimilação-acomodação.
· Argumentação pobre, auto-centrada. Ex. "Gosto de Sociologia porque gosto de coisas diferentes. Tenho um amigo que é deficiente, que eu gosto muito dele".
· Instrumentais
· Leitura e interpretação da fábula "O papel e a tinta", de Leonardo da Vinci: lê devagar, com boa articulação das palavras, mas não consegue interpretar o que leu (extrair a moral da história);
· Expressão oral - apresenta dificuldade na articulação de alguns fonemas. Discurso ininteligível em sessões emocionalmente mais intensas;
· Escrita - apresenta correção ortográfica e gramatical. Predomina discurso narrativo.
· Simbólico-emocionais
· Dificuldade para lidar com as perdas. Procura supri-las comendo, forma primitiva de obter prazer, de incorporar o objeto como sendo seu (satisfação oral).

Durante a prova operatória de classificação-dicotomia construiu figuras representativas de uma casa e um prédio. Projeta nessa representação as diversas mudanças ocorridas em sua vida, que lhe deixaram marcas negativas: deixou seus amigos, seu espaço, sua privacidade. Sente-se desrespeitada, desconsiderada nos seus desejos e vontades. Exemplo disto: teve que emprestar seu quarto a um parente e foi dormir no quarto dos pais.

· Identifica-se com a dramática de alguns filmes. Sente, sofre, chora como se fosse a personagem, portadora de uma deficiência física (cegueira). A partir da personagem explicita seus conflitos.
· Mostra-se ansiosa frente aos novos desafios, apresentando inicialmente um desinteresse ao que lhe é proposto, depois interage e coopera.
· Mostrar suas produções parece ser algo ameaçador; a paciente é muito rigorosa consigo quando fala das suas dificuldades, muitas vezes identificando-se com a deficiência.
· Preenche suas histórias com recordações, valorizando situações difíceis como a morte de familiares para conseguir atenção e mobilizar no outro um sentimento de aceitação.
· Apresenta forte ligação com a figura materna e certo distanciamento da figura paterna; parece não lidar bem com a figura de autoridade; busca parceria e benevolência da figura materna.
· Dificuldade para lidar com os prazos (de entrega de trabalhos), com os limites (de comida)...
· Transferencialmente, Lia se coloca no lugar de alguém submisso, dependente, vazio, deficiente;
· Mostra-se emocionalmente imatura para sua faixa etária;
· Corporeidade
· Lia é uma pessoa potencialmente bonita, vistosa. Dispõe de inúmeros atributos elogiáveis: a cor e a maciez da pele; a cor dos cabelos e dos olhos. Mas há algo "desconjuntado" na sua aparência física: uma desproporção entre o tamanho de seu corpo e de seus gestos. Lembra aqueles adolescentes que crescem de uma hora para outra, sem que tenham tido tempo para se acostumar com as dimensões de seu próprio corpo e com a força de seus próprios músculos. Como eles, por vezes Lia surpreende-nos com a força com que aproxima seu rosto do nosso, quando nos cumprimenta, ou com a força com que bate na mesa, quando em júbilo ou numa manifestação de raiva. Lia parece não ter construído plenamente a sua imagem corporal.

Tratamento (2003)

Não vamos nos estender no relato do tratamento de Lia, anterior ao emprego da história de vida. Queremos apenas citar 3 momentos críticos desse atendimento, que nos permitiram chegar a essa proposta de intervenção psicopedagógico-clínica.

A partir de procedimentos empregados para outros fins (como, por exemplo, o de "Identificação com a roseira" , escolhido para favorecer a mudança de duplas de terapeutas), fomos percebendo a dificuldade de Lia para atender a uma consigna simples, como a de "se colocar imaginariamente no lugar da roseira e falar como se fosse, ela própria, essa roseira", isto é, a dificuldade para se representar imaginariamente ( "Eu sou uma roseira...), para situar-se a partir de uma referência subjetiva, de uma representação mental de si mesma.

Por outro lado, fomos também percebendo cada vez mais nitidamente as dificuldades de Lia para construir um discurso articulado, razoavelmente compreensível. Numa certa sessão, ela relatou o seu fim de semana à estagiária/psicopedagoga. Nesse relato Lia parecia não se dar conta da enorme discrepância entre o tempo cronológico, correspondente a um dia do fim de semana (o domingo) e a quantidade de realizações, deslocamentos e lugares por ela visitados, referidos em sua narrativa. Parecia não ter as noções de tempo e espaço suficientemente construídas. Na sessão seguinte, resolvemos perdir-lhe para desenhar, no chão da sala de atendimento, um mapa representativo do caminho por ela percorrido em seu passeio de fim de semana. Constatamos, assim, suas dificuldades para lidar com representações mentais envolvendo as noções de espaço e tempo .

Foi, assim, tornando-se cada vez mais claro o quanto essa estudante universitária se debatia com dificuldades iniciais, relacionadas à sua própria constituição como sujeito (representação de si mesma ou constituição da noção de eu) e à sua própria construção cognitivo-intelectual (passagem de uma organização prática do real à possibilidade de representação mental do mesmo). A "História de Vida" no processo psicopedagógico

Lia já havia nos contado sobre sua dificuldade para construir uma "linha do tempo", solicitação esta feita por uma de suas professoras do curso de Pedagogia. Retomamos esta informação, clinicamente incompreensível quando nos foi relatada, como pretexto inspirador de uma proposta de trabalho que lhe fizemos.

1ª etapa:

Material: Folha branca de papel, lapiseira, borracha, régua.

Consigna: "Traçar uma linha do tempo", ou melhor, uma "linha representativa de sua vida até 21 anos de idade"

Observações: Lia pega o material e diz: "Eu vou construir a linha do tempo?" Parece emocionada (os olhos enchem-se de lágrimas). Diz que tem que usar a régua, porque é péssima para desenhar. Pega a régua e divide a folha ao meio, sem medi-la. Mede de um em um centímetro e interrompe quando chega aos 21, só que não utiliza nem a metade da folha. Começa a numerar e, ao chegar a 21, diz que o espaço que sobrou é para colocar os próximos anos e que na semana seguinte estará fazendo 22 anos.

2ª etapa:

Consigna: "Paralela à linha da vida, traçar uma outra linha, representativa de sua escolarização".

Observações: Lia pede ajuda. Pergunta por onde deve começar a outra linha. A estagiária-psicopedagoga explica que ela deve começar no mesmo lugar da primeira, com uma diferença: destacar os anos a partir de sua entrada na escola. Lia pensa, fala sozinha, conta nos dedos, procura recuperar imagens de sua infância e, pouco a pouco, vai construindo a 2ª linha, representativa de sua vida. Pergunta como deve escrever as séries. A terapeuta apenas sugere que ela escreva de forma abreviada.

3ª etapa:

Consigna: "Paralela à linha da escolarização, traçar uma terceira linha, representativa de suas perdas". (A terapeuta retoma um tema trazido por Lia na sessão anterior e em várias outras sessões: a dificuldade em lidar com as perdas de entes queridos: os avós e um tio).

Observações: agora Lia parece mais à vontade. Olha para a terapeuta, bem dentro dos olhos, e sorri. Em seguida, traça a linha, fala para si mesma, conta nos dedos, apaga, conserta; parece uma criança brincando, envolvida, contente. Ao finalizar a sessão, Lia comenta que a hora passou tão rápido que nem percebeu e que pela primeira vez não se preocupou com o tempo. A terapeuta pontua a diferença entre esse momento em que ela representa a linha do tempo e sente prazer de outros momentos em que ela é atropelada pelo tempo e sofre por isso. Lia entende que a terapeuta está falando de sua dificuldade para se planejar, para se organizar, e diz que olha muito para o relógio, vê o tempo passar e não faz as coisas, porque se preocupa com o tempo.

Como estas, mais 8 linhas da vida foram traçadas e transformadas em ocasião de elaborações cognitivas e simbólicas - a linha da sexualidade, a das mudanças de casas, dos cachorros, das viagens, da felicidade, do viver, do que gosta de fazer, das aquisições. Lia se esforçava para lembrar de momentos significativos de sua existência, e era convidada a relatá-los, a nomeá-los, favorecendo-se assim a construção da representação de ações situadas no espaço e no tempo. Simultaneamente, Lia se emocionava, recuperando lembranças, às vezes divertidas, às vezes dolorosas, podendo compartilhar essas lembranças com a terapeuta e pensar sobre elas, quer na qualidade de recordações quer na forma de atuações ainda não simbolizáveis.

4ª etapa:

Consigna: Propusemos à paciente que escrevesse sua autobiografia, subdividindo-a em períodos significativos de sua história, e contemplasse os eventos correspondente àqueles períodos, registrados nas diferentes linhas desenhadas. Pretendíamos criar condições para que Lia organizasse seu pensamento, levando em conta não apenas a dimensão temporal, mas também a dimensão espacial.

Observações: Lia envolve-se muito com a tarefa. Escreve durante a sessão e leva o manuscrito para casa, a fim de digitá-lo. Quer aprender digitação, digitando sua autobiografia.

Escreve textos claros, corretos e ordenados logicamente. Ao reler o texto escrito, é capaz de perceber falhas relativa à sucessão temporal e/ou espacial de sua narrativa e corrigi-las. Foi neste ponto que encerramos o trabalho com Lia, em 2003.

O ser humano constrói-se como capaz de classificar, de seriar, de construir noções tais como as de espaço/tempo e muitas outras, a partir de sua relação com outros significativos. É por sentir parte de um grupo familiar e não de outro; por se posicionar como menor que uns e maior que outros; como igual a uns (homem ou mulher) e diferente de todos (único, sujeito do próprio desejo); é por poder relatar os feitos do cotidiano, os caminhos percorridos entre a escola e a casa, as descobertas favorecidas por esses percursos, enfim, é por sentir reconhecido, valorizado e convocado a ser homem/mulher por um outro ser humano, que a criança vai construindo uma representação do mundo e de si mesma.

Embora reconheçamos a primazia da estruturação simbólica do sujeito em relação à estruturação lógica, ou seja, que a relação com o outro humano é condição para a interação sujeito-mundo, indispensável à construção do pensamento lógico-racional, pensamos que, no trabalho psicopedagógico, o sujeito da aprendizagem - e aqui nos referimos especificamente ao estudante de 3º grau com o qual trabalhamos - precisa ser contemplado a partir de um duplo resgate: do infantil (constituição do sujeito) e da criança (construção da inteligência) que há no adulto. Neste sentido, pensamos a história de vida como um instrumento precioso ao trabalho psicopedagógico-clínico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOMINICÉ, Pierre. L'histoire de vie comme processus de formation. Paris, Editions L'Harmattan, 1990.

FERNÁNDEZ, Alicia. Os idiomas do aprendente - análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed, 2001

NÓVOA, Antonio (org.) Vida de professores. Portugal, Porto Editora, LDA, 1992.

RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zélia. Em busca do sentido da obra de Jean Piaget. São Paulo: Ática, 1984.

STEVENS, John. Tornar-se presente - experimentos de crescimento em gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1977.

CONTRIBUIÇÕES DA PSICOPEDAGOGIA À CONSTRUÇÃO DO PROFESSOR

Marisa Dimov
Olga Regina de A. G. Santos
Maria Lúcia de Almeida Melo

O modo como o sujeito aprende e ensina (quer seja uma pessoa, grupo ou organização social) é expressão do seu estilo particular e inalienável de se relacionar com o conhecimento, ou seja, é expressão de sua "modalidade de aprendizagem". A fim de melhor compreender essa afirmação, é preciso explicitar o significado de alguns conceitos básicos da Psicopedagogia, tal como a entendemos: ensinante/aprendente, sujeito autor, saber e, finalmente, o conceito mesmo de modalidade de aprendizagem.

Em primeiro lugar, um alerta: aprendente/ensinante não são sinônimos de aluno/professor, não dizem respeito a papéis sociais eventualmente assumidos por algumas pessoas ou a eventuais tarefas de ensinar ou aprender realizadas por qualquer ser humano. Na Psicopedagogia, o conceito aprendente/ensinante diz respeito a posicionamentos subjetivos/objetivos singulares, frente ao conhecimento, atuantes, simultaneamente, em todos os vínculos e em cada integrante dos vínculos: quer seja aluno-professor, pai-filho, esposo-esposa e outros, ultrapassando, portanto, o âmbito escolar (FERNÁNDEZ, 2001). Mas é preciso ter em mente que esses termos, na linguagem cotidiana, podem se referir à função/tarefa de ensinar e/ou de aprender. Em vista disto, empregaremos os termos "ensinante" e "aprendente" (entre aspas), quando nos referirmos às acepções de senso comum desses termos, e empregaremos os termos sujeito ensinante ou sujeito aprendente, quando estivermos nos referindo ao significado psicopedagógico dos mesmos.

Segundo Alicia Fernández (2001), para que ocorra a aprendizagem, é preciso que quem aprende possa conectar-se mais com seu sujeito ensinante do que com seu sujeito aprendente, e quem ensina possa conectar-se mais com seu sujeito aprendente do que com seu sujeito ensinante. Isto é, é preciso permitir que o aluno, o filho, o pai, enfim, aquele que está aprendendo, possa mostrar o que já sabe : a idéia, ou as opiniões, ou as hipóteses que tem a respeito do que lhe é ensinado. Por outro lado, aquele que está ensinando precisa poder reconhecer que o outro, ao mostrar-lhe o que sabe (o aluno, o filho, o pai...), o ensina. Ensina ao "ensinante" (função) o que ele, "aprendente" (aluno, filho, pai...) conhece sobre o assunto, o caminho que o levou a tais opiniões, a tais hipóteses, mostrando o pensamento que pensou. E se, a partir daí, o "ensinante" regular sua ação, estarão ambos aprendendo e ensinando. Será a partir da interpretação dos "ensinantes" sobre as ações dos "aprendentes", que estes (alunos, filhos...) poderão ir-se constituindo como sujeitos autores (ver adiante). Essa construção do sujeito autor, entretanto, não começa só a partir da idade escolar, mas desde o início da vida do bebê.

"Desde o início de sua existência, o bebê já está constituindo o sujeito aprendente sempre em relação com a modalidade de ensino e de aprendizagem de seus pais" (FERNÁNDEZ, 2001: 56).

Esta autora elucida o acima exposto referindo-se à ação da mãe diante do choro do bebê. A interpretação do choro do bebê e a ação resultante desta interpretação se dará a partir do sujeito ensinante e aprendente da mãe. Ao decidir o que fazer e como fazer estão imbricados os posicionamentos subjetivos desta mãe que poderá aprender ou não, ensinar ou não, com a situação vivenciada. O que temos é que, ao eleger e decidir sua ação sobre o choro do bebê, a mãe poderá fazê-lo de forma definitiva, inconteste, qualquer que seja a resposta do bebê, ou fazê-lo de forma que haja um espaço entre a certeza e a dúvida, de modo que, uma vez interpretando a reação do bebê, possa rever sua ação, ou seja, possa se conectar com seu sujeito aprendente, tentando outra intervenção. Desta forma estarão mãe e bebê aprendendo.

Diz-nos Alicia:

"O sujeito aprendente situa-se nos diversos "entre", mas, por sua vez, os constrói como lugares de produção e lugares transicionais.
Entre a responsabilidade que o conhecer exige e a energia desejante que surge do desconhecer insistente.
Entre a certeza e a dúvida.
Entre o brincar e o trabalhar.
Entre o sujeito desejante e o cognoscente.
Entre ser sujeito do desejo do outro e ser autor de sua própria história.
Entre a alegria e a tristeza.
Entre os limites e a transgressão."

A autora acrescenta que "O 'entre' que se constrói entre o sujeito aprendente do aprendente e o sujeito ensinante do ensinante é um espaço de produção de diferenças" (FERNÁNDEZ, 2001: p 56).

Ao se referir ao espaço de produção de diferenças, entendemos que Fernández marca a existência de modos diferentes de interpretar e de sentir o que aí se passa. Isto é, ao abrir espaço para avaliar se sua ação correspondeu ou não à necessidade do bebê, e responder novamente a sua necessidade, uma vez não satisfeita, a mãe estará demonstrando a existência de uma diferença entre o que o bebê comunicou e o que ela entendeu, dando assim uma mensagem de que o que ela pensou não é o pensado por ele e então merece outra resposta, marcando, portanto, a existência da autoria de pensamento de cada um. Assim sendo, o que temos é o espaço de produção de diferenças entre o sujeito aprendente do aprendente e o sujeito ensinante do ensinante.

O sujeito aprendente e o sujeito ensinante coexistem simultaneamente em cada um de nós e para que ocorra o ensino e a aprendizagem é preciso que os sujeitos (tanto aquele que está ensinando como aquele que está aprendendo) conectem-se com ambos posicionamentos subjetivos.

Ao aprender, o aluno, o filho, enfim, o sujeito, precisa conectar-se com o que já sabe a respeito do que lhe está sendo ensinado pois, remetendo-se a si mesmo, poderá reconhecer seu saber (isto é, modo pessoal de significar o conhecimento; neste sentido, estamos nos referindo ao saber como um espaço "entre", de origem pré-consciente, constituído de acordo com a experiência) e mostrá-lo a quem o ensina. Assim, o "ensinante" poderá também apelar simultaneamente para seus sujeitos ensinante e aprendente e conectar-se a partir de seu sujeito aprendente (é preciso que quem esteja ensinando, esteja aberto para conhecer e reconhecer o outro em seu saber) com o sujeito que está aprendendo (reconhecendo-o como sujeito ensinante, pois ele mostra ao outro o que sabe, de forma que quem ensina possa direcionar sua ação), proporcionando um espaço favorável ao ensino e à aprendizagem.

Como já afirmado, esse espaço deverá abrir a possibilidade do sujeito mostrar ao outro e a si mesmo o que sabe (sobre um assunto em pauta, um tema, uma localidade...), propiciando a articulação entre o que já sabe e o que lhe é novo, transformando o objeto, transformando a si, e a quem ensina.

Portanto, o sujeito vai se constituindo sujeito autor quando lhe é permitido transitar entre seus sujeitos ensinante e aprendente.

Assim sendo, a Psicopedagogia reconhece seu sujeito, definitivamente, como o sujeito autor (de pensamentos, de obras, de si mesmo), sujeito capaz de autoria - "processo e ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção" (FERNÁNDEZ, 2001:94) - que é constituído em "um processo contínuo, nunca acabado e iniciado inclusive antes do nascimento" (idem: 61)

A partir dos conceitos de sujeito aprendente/ ensinante, saber e sujeito autor faz-se necessário explicitar um outro conceito caro à Psicopedagogia: o de modalidade de aprendizagem.

Em cada sujeito, há um modo singular de se relacionar com quem ensina, consigo mesmo como aprendente e com o objeto a ser aprendido (o conhecimento). Esse modo tanto se repete como muda, frente às situações de aprendizagem com as quais as pessoas se defrontam durante sua existência. "Chamo modalidade de aprendizagem a esse molde ou esquema de operar que vai sendo utilizado nas diferentes situações de aprendizagem. É um molde, mas um molde relacional." (FERNANDEZ, 2001:78).

A modalidade de aprendizagem é construída desde as primeiras relações vinculares do bebê com a mãe e a família (seus primeiros "ensinantes") e dos vínculos da criança estabelecidos na escola (seus professores).

A forma como essas pessoas "ensinantes" se relacionaram com a criança ao ensiná-la será um dos fatores determinantes na constituição da modalidade de aprendizagem do "aprendente". Isto é, o desejo manifestado pelo "ensinante" de que a criança aprenda, ao ensiná-la, e o reconhecimento do sujeito ensinante existente nela (criança), são constitutivos de sua modalidade de aprendizagem.

Outro aspecto implicado no conceito de modalidade de aprendizagem está relacionado à forma como o conhecimento circula no meio onde se constrói o sujeito da aprendizagem: o que é dito ou não dito, o que é mostrado ou escondido, a adequação dos desafios (proporcionados pelos novos conhecimentos), a permissão dada pelo "ensinante" ao "aprendente" de colocar o que sabe (mostrar-se "ensinante"), mostrar suas dúvidas (transitar entre seu sujeito ensinante e seu sujeito aprendente), reconhecer-se aprendendo, enfim, de ser reconhecido autor.

Sintetizando, são fatores constitutivos da modalidade de aprendizagem e de ensino das pessoas a forma como os "ensinantes" reconheceram e desejaram a criança como sujeito aprendente e ensinante, bem como a forma como se relacionaram com o conhecimento ou significaram o ato de conhecer.

Portanto, à medida que a criança aprende (o adulto também, pois a modalidade não é definitiva, ela se altera) vai se constituindo sua modalidade de aprendizagem. E sua singularidade será determinada a partir dos vínculos que vivenciou e vivencia no curso de sua vida. Logo, se a forma do sujeito relacionar-se com o conhecimento, com o meio e com o outro estão ancoradas em sua modalidade de aprendizagem, será ela que definirá sua modalidade de ensinante. Assim, a forma de fazer a "ensinagem", ou seja, a modalidade de ensino dos "ensinantes" está diretamente ligada à sua modalidade de aprendizagem. Será a partir do modo como pode aprender e se reconhecer nesse processo, que poderá propiciar espaços saudáveis (ou não) que favoreçam a aprendizagem do outro.

Tendo percorrido alguns conceitos do campo teórico da Psicopedagogia, novos horizontes se descortinam e junto deles os desafios. O que acreditamos é que a Psicopedagogia possa somar com as demais disciplinas que colaboram com a educação, no sentido de provocar reflexões que levem à mudança, à transformação de práticas enraizadas em concepções educacionais ultrapassadas. Como isto pode ser feito?

Pensemos a partir de uma situação concreta: o atendimento (fase diagnóstica) psicopedagógico de uma estudante de Pedagogia, a quem denominamos Fênix, realizado no contexto do estágio regular do Curso de Especialização em Psicopedagogia da PUC-SP/COGEAE .

A história de Fênix é singular, porém nem tanto, quando se pensa na educação brasileira, na universidade brasileira e na relação entre pais e filhos.

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