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BOLETIM CLÍNICO - número 5 - março/1999

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

5. O Enfoque Psicológico - Franklin Goldgrub(1)

Quando se trata de abordar o tema da especificidade do enfoque psicológico, é preciso colocar em pauta, inevitavelmente, duas questões extremamente difíceis e estreitamente relacionadas: a situação da psicologia em relação à psiquiatria (neuropsiquiatria) e às ciências sociais, de um lado e, por derivação, a problemática epistemológica inerente, ou seja, a definição dos determinantes evocados por uma disciplina cujo objeto é designável aproximativamente pelas palavras 'individualidade', 'subjetividade', 'singularidade', 'identidade'.

Em outros termos: para conceituar o seu objeto, a psicologia precisa diferenciar-se da psiquiatria e das ciênciais sociais (definição por oposição) e ainda delimitar o seu campo mostrando que gênero de conhecimento é chamado à existência em seu nome e por que.

Na tradição ocidental, o debate epistemológico permaneceu orientado por dois pólos antagônicos, que ao longo dos séculos, foram se aproximando até se constituírem em par complementar. Assim, o idealismo platônico e sua contrapartida exata, o realismo aristotélico, passaram por um processo de permeabilização recíproca à medida que as posições principistas apoiadas em abstrações foram sendo questionadas e atenuadas em decorrência da démarche científica.

Poder-se-ia dizer que atualmente o idealismo platônico se expressa, ontologicamente, por meio da posição conhecida como nativista ou inatista, cuja base é constituída pelo papel determinante atribuído aos fatores orgânicos, e metodologicamente pela importância concedida à lógica-matemática (incluindo o procedimento dedutivo), tida por instrumento cognitivo próprio da mente humana. Enquanto isso, o tronco aristotélico se ramificou, por seu turno, no empirismo metodológico e na ênfase concedida aos determinantes ambientais, posições associadas ao postulado da continuidade entre a humanidade e as outras espécies.

O darwinismo talvez represente, na história do pensamento ocidental, o momento crucial em que os adversários aparentemente irreconciliáveis celebram um acordo definitivo. De fato, a solidariedade conceitual entre as noções de mutação — fenômeno 'interno' regido por mecanismos cromossômicos — e de seleção natural — fenômeno 'externo' governado pelas leis do meio — permite uma compatibilização significativa entre inatismo e ambientalismo.

Torna-se assim possível admitir a especificidade do gênero humano — de qualquer gênero, aliás — circunscrevendo suas estruturas e funções orgânicas ao âmbito das leis biológicas, de um lado, e de outro, o aspecto variável do respectivo comportamento ao ambiente, instância soberana no que se refere à preservação, transformação e extinção das espécies.

A partir daí, a rígida oposição — epistemológica e metodológica — entre idealismo e realismo, inatismo e experiência, racionalismo e empirismo, cede espaço a um entendimento no qual o antigo conflito subsiste apenas no que se refere ao peso atribuível a cada um dos fatores, não mais tidos por reciprocamente excludentes. Um exemplo: da mesma forma que dedução e indução passam a ser considerados como procedimentos metodológicos complementares, tampouco resta qualquer motivo para continuar confrontando os axiomas da lógica e da matemática (ou da lógica-matemática), de um lado, e o conhecimento produzido pela experimentação no campo das ciências físicas e naturais, de outro.

Dependendo da área do conhecimento e do estado de desenvolvimento de uma dada disciplina, o método será "mais" dedutivo ou "mais" indutivo, mas não há qualquer razão para opô-los ou hierarquizá-los. Atualmente, entre ciências exatas e naturais só há cooperação e a antiga oposição entre postulados teóricos e "dados da realidade" não representa nada além de um resquício associado ao conflito tornado obsoleto que poucos autores ainda preservam anacronicamente.

Se a presente análise, apesar do seu caráter sumário, for plausível, ela terá por desdobramento a constatação de que as ciências da natureza (ou seja, aquelas cujo objeto é constituído pelos fenômenos inorgânicos e orgânicos não humanos) alcançaram, em meados do século XIX, uma estabilidade epistemológica indissociável de seu fulgurante desenvolvimento subseqüente, traduzido nas inovações tecnológicas responsáveis pelas notáveis transformações ocorridas nas relações da humanidade com a natureza. Esse êxito parece ter tido um papel preponderante no que se refere ao processo de constituição das ciências humanas.

Efetivamente, o mesmo século XIX, que sedia o ápice da revolução científica iniciada no Renascimento, assiste à separação entre o estudo filosófico e a pesquisa científica do próprio ser humano, tanto no que se refere à dimensão social como à individual, abrangendo sociedades primitivas e modernas, focalizando simultaneamente a infra-estrutura econômica da sociedade e as manifestações ditas "espirituais" ou simbólicas, ou seja, arte, filosofia, religião e a própria ciência.

A emergência das ciências humanas é indissociável de um processo de emancipação em relação ao modus operandi filosófico, principalmente no que se refere à delimitação e ao tratamento metodológico do seu objeto, decorrendo daí a obtenção de uma maior precisão, que, por sua vez, faculta a aplicação prática dos conhecimentos. Em outras palavras, surgia no século passado o projeto de intervir cientificamente na estrutura social e no comportamento individual, e o paradigma metodológico e epistemológico cujo sucesso nas ciências naturais era inquestionável constituiu-se inevitavelmente no modelo adotado pelas ciências humanas.

Em ciências sociais, e dependendo da ótica, essa "importação" (legítima) ou "contrabando" (nem tanto) não parece ter gerado, pelo menos de imediato, qualquer problema. Em princípio, parecia plenamente exeqüível a adoção do mesmo programa de inspiração darwinista: bastaria partir novamente da teoria da evolução e, em seguida, estender esse princípio à compreensão das transformações sociais ocorridas ao longo da história, intimamente associadas aos progressos do conhecimento.

Assim, os dois fatores, inatista e ambiental, se conjugariam para produzir uma explicação acerca do surgimento e do desenvolvimento da cultura em geral e das formações sociais particulares; a espécie humana, fruto, como qualquer outra, da seleção natural, ter-se-ia fragmentado em diferentes sociedades (análogas a "sub-espécies"), que passaram a competir com os outros animais e entre si mediante práticas adaptativas e transformadoras em relação ao meio natural, juiz supremo responsável pela escolha da melhor modalidade de sobrevivência, identificada finalmente àquela que prevaleceu na Europa ocidental sob a denominação de "sociedade industrial".

Desse ponto de vista, o liberalismo e o marxismo, embora divergindo radicalmente no que se refere à questão ética, comungariam o pressuposto da primazia conferida ao fator econômico.

Em psicologia, as coisas se passaram diferentemente. Se de um lado, o behaviorismo pode ser considerado como uma transposição exata do enfoque darwinista, visto apresentar o repertório comportamental como decorrência da seleção efetuada pelo meio em relação às possibilidades de um organismo, a outra corrente, que, começara a desenvolver-se duas décadas antes da primeira publicação de Watson, privilegiou o fator sexual para compreender o fenômeno que constituía o ponto de partida para a abordagem dos conflitos psíquicos, ou seja, a síndrome histérica.

O desacordo entre as duas principais teorias que inauguraram verdadeiramente o estudo psicológico do comportamento humano — levando em conta que os trabalhos de Wundt inscrevem-se sobretudo no campo da psicofisiologia e que a Gestalt, em sua primeira fase, ateve-se principalmente ao estudo da percepção — não produz qualquer surpresa, pois é patente que visam a áreas consideravelmente diferentes. O surpreendente é justamente o fato de que a psicologia nasça já marcada por essa discordância profunda quanto à natureza de seu objeto, e conseqüentemente, do respectivo método.

O behaviorismo, desde seus primórdios, parecia aplicar-se bem aos comportamentos ditos "normais", que o conceito de condicionamento operante permitia situar no âmbito de processos educativos eficazes, enquanto a psicanálise extraía da prática clínica algumas hipóteses instigantes para explicar a "anormalidade", ou seja, a sintomatologia dita neurótica.

Se supusermos que o objeto da psicologia deveria ser entendido como o comportamento em sua plenitude — incluindo "normalidade" e "patologia" —, então seria de se esperar quer um acordo entre essas duas abordagens, quer, pelo contrário, um embate decorrente da expansão das respectivas redes conceituais no intuito de dar conta da totalidade do campo psicológico. Prevaleceu, como se sabe, a segunda alternativa.

Esse movimento traduziu-se na construção de uma clínica behaviorista, que pesquisou o papel das contingências de reforçamento na produção de comportamentos conflitivos, enquanto a psicanálise, após categorizar junto à neurose as outras estruturas conflitivas descobertas — perversão e psicose — passou a investigar igualmente a natureza da criatividade, tal como se manifesta no indivíduo (sublimação) e na sociedade (arte e ciência).

Entrementes — meados da década de 20 — surgiu a epistemologia genética, teoria preocupada com a descrição e a compreensão do desenvolvimento da capacidade intelectual. A nova corrente imediatamente colocou em cheque as posições behavioristas acerca da aprendizagem ao atribuir um papel determinante aos fatores ligados à naturação orgânica e também por dividir em etapas regidas por uma lógica interna o processo de construção das estruturas cognitivas, com o que limitava severamente o papel da estimulação ambiental.

Ao mesmo tempo, as teses piagetianas se confrontaram com as conhecidas postulações freudianas tendentes a subordinar o intelecto à afetividade. Por outro lado, a teorização psicanalítica, ao incluir em sua jurisdição o estudo das delírios e das alucinações, defrontou-se inevitavelmente com a psiquiatria, que define a psicose como patologia orgânica cuja etiologia deve ser buscada em lesões ou disfunções neuronais (hipóteses posteriormente associadas a outras, relativas a falhas do metabolismo cerebral).

Se acrescentarmos a esse quadro as dissidências que cindiram o movimento psicanalítico (Jung, Adler, Reich), bem como o surgimento de diversas teorias psicoterápicas das mais diversas e respeitáveis origens, entre elas o forte movimento inspirado pela obra de M. Heidegger, a Gestalt-terapia e o psicodrama, por exemplo, é difícil evitar a imagem de uma fragmentação cuja conseqüência mais evidente é a de provocar um extremo ceticismo nos leigos e algo parecido ao desespero por parte dos interessados — entre eles, os estudantes.

Entretanto, e apesar dessa panorama não muito animador, uma importante constatação pode ser feita: a existência, no interior da própria psicologia, de um sério desacordo em relação à definição 'positiva' de seu objeto, não implica na perda de identidade. Em outras palavras, a psicologia continua concebendo-se nitidamente diferenciada das ciências limítrofes. Isso sugere que a psicologia é uma ciência (ou um conjunto de indagações e reflexões que pretende sê-lo) em busca de sua identidade: se não sabe muito bem o que é, sabe muito melhor o que não é. Por outro lado, e não menos importante, recebe por parte da sociedade uma demanda claramente diferenciada da que é dirigida à medicina (psiquiatria) e às ciências sociais.

Essa demanda, por sua vez, explica talvez o único elemento de concórdia subjacente à fragmentação acima mencionada: qualquer que seja a concepção característica de cada uma das diversas linhas existentes, nenhum de seus representantes deixará de admitir que a psicologia trata da singularidade (indivíduo, sujeito, pessoa). O corolário dessa afirmação é que o orgânico e o social situam-se fora do campo psicológico, sem que essa exclusão implique em desconsiderar ou secundarizar essas jurisdições científicas. Se a psicologia desvincula a pessoa da espécie e da sociedade não é por inadvertência, ideologia ou ingenuidade — ela não poderia agir de outra forma sem deixar de ser psicologia.

O mesmo recorte é praticado pela medicina e pela sociologia em relação a seu objeto, com a diferença de que nesse caso não se produz qualquer espanto. A medicina define-se como estudo, com finalidades terapêuticas, do organismo humano — um câncer é um câncer, uma pneumonia é uma pneumonia, e atingem igualmente o operário, a profissional liberal, o empresário, a artista, o "esquizofrênico", a "fóbica", o idoso, a criança, o sueco ou o senegalês. Certamente as condições materiais de que cada um dispõe para o tratamento variam de acordo com o nível econômico, mas não é isso que a medicina estuda.

Se, por outro lado, quisermos analisar qualquer processo de tomada de decisão no âmbito coletivo, adotando um enfoque sociológico, seja ele qual fôr, o que entra em pauta é a posição política dos respectivos agentes: torna-se irrelevante, para entender o resultado da votação de uma proposta de greve por parte dos operários da indústria automobilística, saber se o líder sindical que fez o indicativo em questão sofre do coração e/ou doou um rim ao cunhado, tem ou não colesterol alto, é histérico e/ou claustrofóbico, ajuda os filhos nos estudos e/ou bate neles quando tiram notas baixas.

Nesse terreno tão propício a mal-entendidos, é preciso esclarecer que, do ponto de vista aqui defendido, torna-se imprescindível distinguir a questão epistemológica da social. Do ângulo da psicologia, toda e qualquer queixa deve ser simultaneamente respeitada e considerada "omissiva" ou lacunar, ao mesmo tempo em que qualquer julgamento destinado a discriminar entre "problemas sérios" e "fúteis", segundo os critérios pessoais do psicólogo, mostra-se inteiramente descabido: a "dondoca" que sofre porque não pôde fazer sua viagem mensal à Europa, o desempregado que está a um passo da penúria matrial, o marido que não vê mais sentido no casamento, a mãe que se arrepende porque dedicou seus melhores anos aos filhos e renunciou à própria individualidade, o adolescente sufocado pela mãe ou oprimido pelo pai, o apaixonado não correspondido, o trabalhador que não consegue sustentar a família, o profissional desiludido com seu trabalho que recorre cada vez mais ao uísque ou à cachaça, todos têm direito a uma escuta simultaneamente imparcial e comprometida.

Mesmo porque é próprio do enfoque psicológico supor que a queixa "esconde" uma série de outras questões, todas elas relativas, paradoxalmente, à cumplicidade, por parte do "paciente" (ou analisando, cliente, etc...) com a situação que motiva sua demanda de tratamento. Em outros termos, o psicólogo não tem como deixar de posicionar-se de forma a captar a participação do analisando (...) no problema que o aflige, desde que não confunda responsabilidade com culpa.

Essa postura implica que os valores pessoais do psicólogo devem ser totalmente excluídos de sua atuação profissional. Àqueles que alegam a impossibilidade de fazê-lo, pode-se responder dizendo que um clínico geral ou um ginecólogo certamente não invocam a legitimidade e a autencidade de seu desejo sexual para admiti-lo ou tolerá-lo na prática clínica. Isso pode até acontecer, mas não faz parte da atuação profissional — e é muito logicamente concebido como algo prejudicial à mesma.

Caso o psicólogo reivindicasse uma condição privilegiada para manter suas crenças e valores no interior do espaço profissional, seria preciso então encontrar um procedimento destinado a excluir do consultório de psicoterapeutas de esquerda todos os eleitores que votassem em partidos de direta; e outras preferências, sexuais e futebolísticas, por exemplo, deveriam justificar uma triagem semelhante...

Mas se na intervenção ginecológica supõe-se que o corpo feminino deva tornar-se organismo (e o mesmo, mutatis mutandis, possa e deva ser dito a respeito de outros atos profissionais, em direito, engenharia, administração, etc.), que tipo de metamorfose ocorre — ou deveria ocorrer — com a pessoa, quando se trata da intervenção psicológica, para que correspondentemente o psicólogo possa atuar enquanto tal, e não como amigo, conselheiro, confidente, etc.?

A tentativa de responder a essa pergunta recoloca em pauta a divisão da psicologia, ou seja, conduz ao impasse aparentemente insolúvel das várias posturas possíveis face a seu objeto. Entretanto, é possível focalizar a questão a partir de uma outra perspectiva. A esse respeito, a história da psicanálise ou, mais exatamente, da obra de Freud, pode ser extremamente instrutiva. Médico de formação e pesquisador nutrido nos ideais científicos do século XIX, Freud não poderia escapar do par complementar epistemológico acima mencionado.

Suas primeiras hipóteses teóricas acerca da neurose refletem essa situação. A teoria do trauma assinala a adesão de seu autor ao ambientalismo e sua substituição pela conceituação referente à sexualidade infantil demonstra que, ao aferir as falhas do primeiro enfoque, ele se encaminha imediata e necessariamente para a alternativa organicista.

A formulação da primeira teoria do Édipo reflete a conciliação entre as hipóteses anteriores mediante uma modalidade de compatibilização que denominamos "darwinista": a sexualidade infantil, concebida ainda como derivada do orgânico (oral= ingestão, anal=excreção), passaria pela sanção (repressiva, permissiva, equilibrada) do meio familiar, e o comportamento resultante acabaria por expressar-se na maneira pela qual o desejo sexual seria vivenciado a partir da puberdade. Entretanto, lado a lado com essa concepção "oficial" pela qual apresenta publicamente a psicanálise, Freud não deixa de estudar o sonho e a fantasia, que representam o aspecto clandestino e escandaloso de sua elaboração teórica.

O sonho conduz ao método da associação livre e a fantasia a uma concepção em que o juízo sobre a verossimilhança ou não das palavras do paciente é colocado em segundo plano, passando a importar unicamente seu sentido, subjacente à significação dos enunciados (dimensão informativa / comunicativa). É quando a expressão "realidade psíquica" surge pela primeira vez.

Tudo se passa como se o trabalho clínico ensinasse a Freud que o universo psicológico se constitui à revelia das experiências e dos determinantes orgânicos, numa região na qual só é relevante a questão do sentido. A implicação é que as palavras do paciente devem ser ouvidas não mais como relatos de fatos experenciados ou descrição de estados somáticos (caso em que a pergunta pela veracidade ou falsidade dos enunciados seria efetivamente pertinente), mas sim como portadoras de um sentido que aponta para a peculiaridade do 'mundo interno' do analisando.

Isso, por sua vez, implica considerar a linguagem como um fenômeno muito mais complexo do que comumente se pensa quando se a concebe enquanto instrumento destinado à comunicação. O reconhecimento da autonomia da linguagem, por sua vez, tem como consequência inevitável o questionamento da concepção epistemológica apoiada no modelo darwinista (causalidade ambiental/orgânica). Essa constatação foi para Freud muito menos um motivo de júbilo do que de preocupação, porque lhe parecia que o método interpretativo e a correspondente utilização da linguagem fora dos parâmetros da informação/comunicação condenavam a psicanálise à exclusão do campo científico. E foi realmente assim que seus contemporâneos se conduziram — pedindo a excomunhão da "ciência dos sonhos" e o respectivo exílio do território científico.

Entretanto, a revolução epistemológica cuja causa Freud se recusava abraçar em nome de sua lealdade à concepção positivista de ciência, mas que inevitavelmente, e malgré lui, o próprio trabalho clínico promovia incessantemente, acontecia também em outras disciplinas. A lingüística, a partir de Saussure, libertou-se da tutela da sociologia, da biologia e da própria psicologia e passou a estudar seu objeto como um fenômeno independente da realidade social, do substrato orgânico e da consciência do falante.

A antropologia, a partir de Lévi-Strauss, focaliza as instituições sociais em sua dimensão inconsciente e faz do mito a primeira forma de elaboração cognitiva da humanidade, concedendo-lhe o título de precursor da futura ciência, com a qual compartilharia a mesma lógica, apesar dessa semelhança estrutural permanecer ofuscada pelas evidentes diferenças de conteúdo e forma. A partir da teorização lévistraussiana, as crenças e costumes (o modus vivendi) das sociedades primitivas aparecem sob uma nova luz, que questiona a abordagem proposta pelas correntes etnológicas vinculadas ao evolucionismo darwinista.

Em outras palavras, pode-se dizer que a psicologia não tem porque envergonhar-se de sua situação atual. É inevitável que uma ciência cujo objeto não pode ser prismado pelo modelo organicista/ambientalista sofra as conseqüências da incerteza epistemológica em que o pensamento contemporâneo está imerso.

Segundo o ponto de vista aqui exposto, os obstáculos existentes devem-se ao fato de que a teorização da linguagem ainda se encontra em estado incipiente, pelo menos no que se refere à sua aplicação ao campo psicológico, e a maioria das correntes psicológicas não se deu conta suficientemente da importância de que tais estudos se revestem para a sua própria disciplina. O trabalho clínico, porém, obriga o psicólogo, independentemente do referencial teórico adotado, a testemunhar o papel fundamental que o discurso tem em sua prática. O que aconteceu com Freud e a psicanálise provavelmente irá se repetir em outros casos, com outros autores e teorias — e isso já pode estar acontecendo.

Os raciocínios anteriores conduzem a algumas hipóteses que não se pretendem conclusivas, sendo sugeridas à guisa de contribuição para uma descrição interpretativa do panorama atual da psicologia:

1) Se a psicologia reivindica efetivamente o estatuto de disciplina científica, seu objeto é autônomo e deve ser diferenciado do das disciplinas limítrofes, principalmente a psiquiatria e as ciências sociais. Isso não significa negar o substrato orgânico e o meio cultural, mas sim, sustentar que a identidade pessoal e a experiência da subjetividade não se constróem em obediência a fatores biológicos nem em resposta aos valores vigentes numa determinada formação social, mediante a intermediação da classe ou da família.

Antes derivam de um outro tipo de processo em que a linguagem e a identificação desempenhariam um papel fundamental. Cabe à psicologia elucidar o que tem sido chamado de subjetividade, singularidade ou identidade, já que esse constitui precisamente o seu campo, e estudar a constituição do sujeito. É imprescindível que, visando a essa finalidade, ela mantenha um diálogo permanente — atento, crítico, emulativo e provavelmente polêmico — com as teorias organicistas (neuropsiquiatria) e culturalistas (ciências sociais), interessadas na questão, e que desenvolvem suas próprias hipóteses a respeito.

2) As atuais dificuldades da psicologia, traduzidas pela sua divisão em várias teorias e correntes, são inevitáveis, visto a revolução epistemológica em andamento no campo das ciências humanas. O modelo organicista/ambientalista (darwinismo) já se tornou obsoleto sem que, todavia, o seu substituto esteja configurado.

Muitos indícios apontam na direção de um novo paradigma baseado largamente nos estudos atuais sobre a linguagem, que congregam não somente a lingüística mas também a antropologia (Lévi-Strauss), a história (história das mentalidades), a filosofia (Heidegger, Wittgenstein) e certas correntes marxistas e filosóficas cujo interesse se centra no social (Althusser, Foucault, análise do discurso francêsa).

3) Em que sentido a linguagem pode ser entendida como um fator epistemológico tão fundamental para as ciências humanas como o orgânico e o ambiental são (ou foram, num certo momento histórico) para as ciências da natureza? Provavelmente ainda não há elementos para uma resposta conclusiva, mas alguns argumentos já podem ser apresentados.

a) A linguagem é universal — a história e a antropologia jamais deram testemunho de uma sociedade avernacular. Juntamente com a proibição do incesto — e dificilmente tratar-se-á de uma coincidência — trata-se de uma instituição presente em todas as formações sociais conhecidas;

b) É impossível estabelecer qualquer tipo de hierarquia entre as diversas línguas ou famílias lingüísticas. Ao contrário da tecnologia, as línguas não evoluem. Transformam-se(2), decerto, mas não em obediência a fatores conducentes a uma maior eficácia ou adequação. A gramática de um idioma da mais primitiva das sociedades — do ponto de vista tecnológico — é tão complexa quanto a da mais avançada sociedade industrial;

c) A aquisição de linguagem pela criança não tem como ser explicada por meio dos padrões habituais da aprendizagem. A complexidade desse processo aparentemente tão banal só pode ser vislumbrada quando comparamos sua rapidez e espontaneidade com os lentos resultados obtidos no laborioso estudo de uma segunda língua. Entre dois e três anos de idade, a criança torna-se capaz de dominar espontaneamente uma estrutura sintática e gramatical que nunca compreenderá plenamente, ainda que posteriormente se dedique a seu estudo como lingüista;

d) Não há, no corpo humano, nada que possa ser denominado, do ponto de vista anatômico-fisiológico, de aparelho fonatório, além das cordas vocais, comuns a várias espécies(3). A fala articulada depende da utilização do aparelho respiratório e da cavidade bucal com sua estruturas destinadas à alimentação (língua, dentes). Em nível cerebral, os estudos sobre a afasia demonstraram que o comprometimento dos centros lingüísticos afetam a emissão e a compreensão de sinais, mas deixam intacta a capacidade de atribuição de sentido (significância). Por exemplo: uma afasia motora verbal localizada ("pura") não impede que o paciente se expresse por escrito.

Esses dados já são suficientes para entender porque o estudo da linguagem tende a produzir uma revolução epistemológica. Há argumentos fortes para hipotetizar que o fenômeno simbólico é independente de fatores orgânicos e culturais. Com isso, está-se afirmando que, se certamente a linguagem não existe no "vácuo" (ou seja, sem corpo e sem sociedade), por outro lado, não constitui uma decorrência do biológico e do cultural. A articulação entre língua, sociedade e organismo deve ser buscada em outro nível que não o de uma relação epifenomenal.

e) Finalmente, se considerarmos a história do indivíduo, isto é, o nível ontogenético, a impossibilidade da aquisição da linguagem está fortemente associada às síndromes autista e esquizofrênica infantis. O surto psicótico no adulto também afeta profundamente os níveis sintático e semântico de seu discurso. A psicologia não poderia deixar de se interessar pela significação desses dados, visto o avanço que podem propiciar em relação à compreensão da estruturação e desestruturação da identidade.

4) No decorrer das pesquisas e debates em questão, as diversas escolas e teorias psicológicas confrontar-se-ão necessariamente pela hegemonia das respectivas hipóteses, como aconteceu na história de todas as outras ciências. Esse processo é inerente à démarche científica e não há porque deplorá-lo. Seu resultado pode expressar-se por meio de uma síntese em que as diversas teorias atualmente existentes se amalgamem solidariamente ou, pelo contrário, de maneira a que algumas percam sua posição a expensas de outras, ou ainda de forma a que a articulação entre as diversas teorias se configure como um conjunto constituído sob a égide de uma ou de algumas delas. É possível ainda que tudo isso ocorra ao mesmo tempo e em graus variados. De qualquer forma, também no interior da psicologia, o diálogo (o debate, a polêmica, a emulação) entre os diferentes pontos de vista teóricos é necessário e inevitável.

5) O estudo da linguagem é essencial para a formação do psicólogo. Disciplinas e temas como semântica, aquisição de linguagem, metáfora, discurso, da mesma forma que o estudo de autores como Saussure, Benveniste e Jakobson, entre outros, poderiam contribuir decisivamente para que o estudante conheça melhor não só o seu instrumento de trabalho como também um fenômeno intimamente associado à constituição do objeto de sua ciência.

6) Isso porque, se for possível propor uma resposta para a pergunta acerca do que corresponderia em psicologia ao que em medicina é constituído pelo organismo, muito plausivelmente se poderia dizer: o discurso, na singularidade de sua manifestação.

Notas:
(1) Professor de Psicanálise e Teorias e Técnicas Psicoterápicas da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, com mestrado em Filosofia e doutorado em Linguística; autor de Futebol, Arte ou Guerra?, Freud, Marlowe & Cia, Mito e Fantasia, entre outros livros.

(2) Sobretudo em termos de vocabulário. As modificações da estrutura gramatical são muito mais lentas e geralmente dizem respeito à escrita.

(3) Esse ponto de vista, defendido na primeira versão deste texto (1994), foi modificado. Durante a elaboração da minha tese de doutorado (A máquina do fantasma – Aquisição de linguagem e constituição do sujeito), tomei contato com a obra de Philip Lieberman The biology and evolution of language (1984), cuja argumentação, no sentido de atribuir o surgimento da linguagem à ocorrência de uma série de mutações que resultaram na modificação do aparelho respiratório a ponto de transformá-lo num sistema respiratório-fonatório, é extremamente convincente.

O reconhecimento da pertinência dessa conclusão não exige, porém, qualquer alteração no arrazoado supra. A contribuição de Lieberman tem uma notável importância no que se refere ao estabelecimento da ligação entre a origem da linguagem e o processo de seleção natural, mas também comprova que, a partir de sua emergência, a linguagem instaura uma relação inédita entre organismo e natureza, fazendo do ser humano um animal face ao qual o processo de seleção natural já não exerce seus efeitos como acontece com os outros animais.

A linguagem decorreria, em termos de origem, dos mesmos mecanismos tão bem descritos por Darwin, mas suas conseqüências subtraem o ser no qual se 'instala' desses mesmos mecanismos. Ela teria assim promovido uma modificação qualitativa da lógica do comportamento do mamífero em questão, acarretando conseqüências extremamente complexas em relação às respectivas emoções e intelecto.

Do ponto de vista da teoria da evolução, pode-se dizer que o homo sapiens torna-se, desde seu surgimento, um fator de pressão ambiental — criando e extinguindo espécies animais e vegetais, modificando a geomorfologia do planeta, o clima, etc., como a crise ecológica que tem acompanhado as diversas etapas da revolução industrial ilustra à exaustão. Esse movimento, de transformação do meio, porém, é muito anterior à sociedade industrial e já está presente no neolítico, embora em escala incomparavelmente menor.