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Periferia no Centro
Nicolau Sevcenko

O projeto Brasmitte foi formulado a partir de locais específicos, concretos _ o Brás e o Mitte, em Berlim _ a partir dos quais se pode falar da questão da experiência e da percepção na cidade. O que não é o mais comum, porque quando se fala da cidade, normalmente ela é transformada num fenômeno de análise racional, por parte de urbanistas, planejadores, administradores, políticos, cientistas sociais que tendem a ver a cidade como um todo orgânico e articulado e a pensarem a cidade como uma simultaneidade de fluxos e de comunicações. Mas o fato concreto é que todo ser humano percebe a cidade do seu locus de enraizamento, a partir do qual a cidade adquire o seu sentido.

A escolha do Brás é em especial feliz, porque ele constitui uma das mais fortes experiências de centralidade, no contexto da cidade de São Paulo. Ele é também um dos pontos a partir do qual se pode sentir com maior nitidez o desvendamento da própria história da constituição dessa cidade, que é São Paulo, porque ela tem uma historicidade muito peculiar, no sentido em que até o final do século passado São Paulo era uma pequena aldeia, tão pobre, que era praticamente só habitada por mulheres e crianças. Os homens saíam da cidade prá tentar a vida fora dela, e daí a irradiação que São Paulo fez prá toda a dimensão meridional do território brasileiro e até em direção ao oeste e à Amazônia.

Foi no final do século XIX, graças ao conjunto de práticas especulativas relacionadas à cafeicultura, que impunha a concentração de todo o fluxo da produção num único ponto e que fosse despejada aos poucos no mercado internacional, através do porto de Santos, a fim de manter o preço. Esses estoques se concentravam numa parte, no alto do planalto, e os especuladores ingleses decidiram que esse ponto seria São Paulo. A partir daí, então, a cidade adquiriu a sua vocação histórica-metropolitana. E praticamente da noite para o dia, num processo característico do mundo subdesenvolvido, ou do terceiro mundo,

ou em especial da América Latina, essa pequena aldeia, se tornou uma megalopolis de nível global.

O Brás fica numa posição, no contexto de São Paulo, a partir da qual a história desse crescimento ultra-rápido, num ritmo dramático e numa escala catastrófica, pode ser visto praticamente de camarote.

Para falar dos parâmetros da experiência e da percepção na metrópole, eu gostaria de dividir a questão da percepção em quatro níveis _ a escala, a transitoriedade, o esfacelamento e a plasticidade_ e colocar a da experiência nos âmbitos da materialização da memória, do desligamento, da segregação e daquilo que eu chamo de efeito órfico, que é a simbolização desse sofrimento decorrente da opressão social.

No que diz respeito à escala, é uma simplificação falar em Brás, porque o Brás como área, como região, comporta um contexto bem maior, que envolve ainda outros bairros, que são o Belém, o Tatuapé, o Pari, a Bela Vista, o Cambuci, que são áreas definidas por

ficarem no triângulo dos rios, o Tietê, o Tamanduateí e o Tatuapé. Portanto, são áreas especialmente baixas, que ficam aos pés da colina central da cidade, que é ali onde fica a Praça da Sé. É o núcleo histórico da cidade. Logo, o conjunto centralizado no Brás fica aos pés dessa colina histórica, fica nas várzeas da cidade, uma região basicamente alagadiça, por isso muito insalubre e um foco permanente de endemias. A instalação humana ali foi um processo bastante difícil e particularmente dramático. E isso dividiu um pouco a história da cidade entre os que estão na área de cima, nas áreas secas da cidade e aqueles que ficam nas áreas baixas, nas áreas úmidas e, portanto, nas áreas insalubres da cidade. Essa população das áreas insalubres é a população das várzeas, e a expressão "varzeano" qualifica o tipo de pessoa que no contexto da cidade de São Paulo é tido como a menos civilizada, a mais rude, a mais rústica, aquela especialmente destinada ao trabalho pesado.

O Brás é um pouco a centralização histórica da experiência dessa população varzeana. E embora ela fique bem de frente para a colina histórica da cidade, a região do Brás não é uma extensão dessa região, porque a cidade de São Paulo é claramente definida por essa presença dos rios. E os rios atuam como se fossem muralhas invisíveis. E há os que moram do lado de dentro das muralhas e os que moram do lado de fora das muralhas. E o Brás, portanto, nesse sentido, é um bairro que fica do lado de fora da muralha invisível das águas, o lado das várzeás úmidas.

Ele pode ser visto como uma espécie de apêndice externo, ou um tumor do crescimento catastrófico da cidade. Foi por isso, por ser considerado uma área de fora, que todo tipo de atividade considerado de periculosidade, ou de alguma forma de efeito contaminador, ou poluidor no contexto da cidade, foi colocado nessa área varzeana. E é por isso que o Brás, desde o começo, concentrou as fábricas, as hospedarias baratas, os mercados populares, as pensões, os cemitérios, o matadouro, hospitais e, em particular, o Gasômetro da cidade, com o seu cheiro nauseabundo.

Ela é, portanto, a parte renegada do fenômeno urbano, a parte onde estão os dejetos, onde está o mau cheiro, onde está o entulho e porque ali é que se concentra a população operária original da cidade, e é ali onde se construiu a experiência histórica da construção do movimento da classe trabalhadora, a partir dos primeiros núcleos anarquistas até a formação dos partidos operários instituicionais, é a área também que concentrou em maior escala o sangue, o suor e as lágrimas de que essa cidade é composta.

Da mesma forma, é o marco da criminalidade e foi ali que nasceu e que teve a sua vida heróica, por assim dizer, o bandido social por excelência da cidade, que é o Meneghetti. Ou, num contexto mais tardio, o bandido da Luz Vermelha. Portanto, os grandes bandidos heróis da cidade, aqueles com os quais a população se envolvia e os quais sentia como sendo os seus vingadores contra a parte nobre da cidade eram criaturas desse contexto. E é obviamente também a área pioneira na prostituição paulista.

Numa visão do Brás, num antigo cartão postal, na época inicial da expansão da cidade, no início do século XX, pode-se ver um a concentração de fábricas, das emissões de poluentes, de armazéns, o bairro todo praticamente voltado para a produção industrial e para a distribuição dessas mercadorias, em contextos de estradas de ferro e corredores de circulação.

Numa outra imagem, da mesma época, vê-se o contrário: a cidade de São Paulo, o centro, o núcleo histórico da cidade de São Paulo. A colina da criação da cidade, vista de baixo para cima, vista do Brás em direção ao alto. Através, justamente, da Rua do Gasômetro. Portanto, o Brás sempre viu a cidade de baixo para cima, e a cidade teve o privilégio de vê-lo de cima para baixo.

No entanto, o que mais caracteriza o Brás é exatamente esse elemento de transitoriedade. O Brás tem, desde a sua origem uma vocação centrípeta. Ele é um vetor de irradiação, é um vetor de espiralamento das populações e das mercadorias que a partir do bairro se dirigem a todas as demais direções da cidade. No sentido em que, desde a sua origem, ele já nasce como um nexo viário e hoje temos lá uma base, uma estação de distribuição rodoviária no Largo da Concórdia, que abrange praticamene todos os pontos cardeais da cidade. O Brás é também um dos pontos do Metrô da cidade e é o principal entroncamento urbano e interurbano ferroviário da cidade através da sua estação. Portanto, ele tem essa tendência de jogar sua população para todas as direções e com isso criar uma espécie de situação de nexo e de coligação entre as partes.

Não só por essa estrutura viária, mas em particular por causa da população que habita o bairro. Desde a sua origem também ela é basicamente constituída de imigrantes. Originalmente imigrantes estrangeiros, sobretudo imigrantes italianos de várias regiões, de todas as partes da Itália. Posteriormente, com o fim do fluxo imigratório estrangeiro, ele se torna o foco de migrações internas do Brasil, sobretudo de populações do norte e nordeste, em direção ao sul. Logo, a população é uma população de alta instabilidade e de grande mobilidade. O que é um elemento muito importante para avaliar a característica da atmosfera daquele bairro, na medida em que a mobilidade que as pessoas manifestam pela sua própria itinerância é um elemento do seu próprio processo de emancipação. Essa é a energia que está por trás de todo processo migratório, na medida em que as pessoas migram normalmente de áreas rurais, onde vivem enclausuradas em sistemas de dominação pessoal, de dominação familiar, de subordinação a estruturas sociais e políticas locais e o seu processo de migração é um processo de escape dessa sujeição local e o ato de estar em mobilidade é exatamente a manifestação do seu desprendimento de uma situação de subordinação em direção a um processo de emancipação e de libertação. Portanto, do ponto de vista dessa população a mobilidade é um valor. Enquanto você está se movendo você não pode ser novamente aprisionado num contexto social ou político no qual a sua posição vai ser necessariamente subalterna. E essa é em grande parte a tensão fundamental que há entre a população da cidade nas colinas históricas nas partes altas e secas, e que é uma população altamente fixada e sedentarizada, com relação a uma população cujo principal valor da vida é exatamente o seu desprendimento e a sua mobilidade.

Essa é a razão porque também grande parte das habitações na região são precárias, na medida em que ninguém necessariamente vai ao Brás para ficar no Brás. O Brás é um ponto de passagem. Ele é apenas um vetor dessa mobilidade e dessa transumância, dessa itinerância, desse nomadismo social.

Na imagem da Hospedaria dos Imigrantes que recebia imigrantes de todas as partes do mundo - particularmente da região Mediterrânea - , no começo do século, e as redistribuía em São Paulo, sobretudo para as fazendas de café no interior do Estado é possível ver, no estado esquálido da população, as condições de vida de origem dessas populações e a destinação que lhes esperava no Brasil.

Há todo tipo de hospedarias baratas ao lado de hotéis, de pensões e por conta disso também toda uma cadeia de pequenos restaurantes e bares nos quais a população móvel eventualmente se reúne em circunstâncias precárias e provisórias. Essa precariedade, essa provisoriedade, essa mobilidade siginificam também que todo o comércio na região é de pequenos objetos voltados prá um consumo imediato e o sistema de vendas sobretudo se faz através de contatos pessoais e na base da confiança, aquilo que no Brasil se chama de "fiado". O que torna as relações de homem para homem, de pessoa para pessoa extremamente importantes e o nexo emocional como sendo aquele que fundamentalmente coliga o bairro e a comunidade muito mais do que qualquer nexo racional, ou nexo legal, ou nexo institucional.

Nesse contexto de mobilidade, de itinerância, de provisoriedade, de precariedade, o símbolo mais forte não é o da estação, ou da hospedaria, mais diretamente ligados à idéia de mobilidade, mas o mercado. Desde o início, o Brás foi espontaneamente uma área com vocação de se tornar um mercado aberto, um mercado popular, um mercado de pequenas trocas. Essas trocas se dão em vários níveis. Elas não são só trocas de mercadorias, elas são trocas de valores, trocas de experiências, trocas de culturas, trocas de expectativas, trocas de desejos.

O mercado é de fato a parte que mais caracteriza o sentido de interação social e de trocas que o Brás representa. Esse mercado tem vários níveis. Ele é um mercado local, de pequenos bens de consumo ou de pequenos bens duráveis, de baixo custo. É também um mercado nacional, na medida em que as fábricas do Brás se especializam em fazer produtos populares de baixo custo, que são reexportados prá todo o Brasil, especialmente para região norte e nordeste, o que faz com que venham caravanas de caminhões de toda a região norte e nordeste e oeste do País, e se concentrem no Brás, o que dá ao Brás uma centralidade não só no contexto paulista, mas no contexto brasileiro. A maior parte da população humilde do Brasil tende a usar como calçado sobretudo sandálias, sandálias de plástico, e quase que a totalidade das sandálias de plásticos comercializadas no Brasil são de produção da região do Brás.

Esse comércio é também um comércio internacional, na medida em que uma das especialidades do Brás, como não poderia deixar de ser, é um comércio clantestino, é o contrabando. Então é possível encontrar desde a mercadoria mais barata e mais simples até a mais sofisticada e mais cara em algum lugar, em algum beco escondido, por preços muito abaixo dos preços de mercado. Mas prá isso é necessário conhecer o bairro e entrar nesse circuito de contatos pessoais, de pessoa a pessoa, de conhecido prá conhecido, prá poder ter acesso a essas oportunidades de especulação.

O fato de o Brás, portanto, ser uma comunidade centrada no mercado e nas práticas do mercado manifesta desde o início como o modo de existência privilegiado, naquele contexto, é o de jogar com o mercado, de jogar com a cidade, de especular, de conhecer as condições postas e saber como praticamente jogar com ela, de tal maneira, a encontrar aquelas que melhor lhe favoreçam e aquelas que mais possam lhe trazer a contemplação das expectativas. Isso exige, do ponto de vista psicológico, uma situação permanente de atenção, de agilidade, de rapidez, de flexibilidade, em suma, de adaptabilidade. Essa gente, portanto, que sai de um contexto onde os papéis são desde sempre marcados e as posições prá sempre fixas entram nesse espaço de alta instabilidade e de grande fluidez, onde o estado psicológico solicitado, permanentemente, é esse de atenção contínua. Isso faz com que as pessoas vivam diante de um panorama de multiplicação contínua de perspectivas, em diferentes níveis, com diferentes repertórios e com diferentes imagens.

É isso que faz da versatilidade o elemento decisivo desse processo de adaptação e que torna os habitantes dessa área varzeana muito mais maleáveis ao conjunto de experiências ricas do espaço urbano, do que a população cuja fixidez lhes prescreve uma trajetória definida.

Um dos elementos da percepção que eu gostaria de comentar aqui á a plasticidade. Isso pode ser entendido em vários níveis. O mais importante deles eu acho é o fato de que a principal das mercadorias que circulam nos mercados populares do Brás é justamente o plástico. Os chinelos, os calçados populares são todos eles feitos de polímeros sintéticos e diferentes tipos de combinação de plásticos, com diferentes coloridos, diferentes texturas e diferentes cheiros.

Isso é muito curioso, porque quando a indústria foi implantada no Brás, originalmente, era uma indústria voltada para o que se podia chamar de materiais nobres, destinados àquelas classes das posições altas da cidade. Eram indústrias de cristais, de pratas, de madeiras nobres.

Esses materiais plásticos, esses polímeros sintéticos, são alvo de um imenso preconceito das populações sedentárias, que os consideram objetos kitsch. Mas o fato é que eles são perfeitamente adaptados a essa cultura da mobilidade, na medida em que eles são inquebráveis, e você pode levá-los onde quiser, na medida em que eles são muito baratos e se você não puder levar você pode deixar para trás sem nenhuma espécie de remorso e na medida em que eles são altamente informativos. Eles têm cores extremamente sofisticadas e variadas, eles têm formas inusitadas, eles têm capacidades flexíveis que podem ser ampliadas ou reduzidas, conforme as necessidades. Portanto o plástico combina perfeitamente com a plasticidade dessa população e com o seu processo de adaptabilidade.

É possível encontrar de tudo, nesse grande mercado, porque ele não é, como eu disse, apenas um mercado de mercadorias, mas é um mercado cultural, ele é um mercado de valores, ele é um mercado de símbolos, e lá estão, portanto, desde apetrechos e rituais africanos, até paisagens dos lagos suíços a laser. Um elemento imagístico que apela muito ao gosto popular são quadros produzidos com técnica gráfica de laser, que dão um efeito bastante brilhante e quase tridimensional, de um potencial mágico e que são vendidos por preços muito baratos. E que normalmente ou são imagens religiosas, ou são paisagens dos lagos suíços, ou dos bosques da Renânia.

E é muito curioso porque a dois metros dali há lojas de artigos africanos, ou nas próprias barracas do mercado são vendidos artigos falsos, porém de grifes americanas verdadeiras. Há também numa barraca ao lado ervas indígenas, queijos europeus e peixes da Amazônia.

Absolutamente tudo que se pode imaginar num espaço mínimo de ocupação e contemplando todos os gostos, todas as expectativas, todos os desejos e todas as fantasias. É possível ser tudo. É possível ser europeu, americano, paulista, mineiro, nordestino, amazônico, gaúcho, o que se quiser dentro do Brás.

A respeito da experiência, um dos aspectos que eu gostaria de comentar é essa prática que eu chamo de materialização da memória. Porque o que assinala essa população, como eu disse, é a perda do seu contexto de origem, na medida em que são maciçamente migrantes, e a sua memória pessoal, afetiva, está modelada por uma parte do mundo com a qual eles definitivamente romperam, e para qual eles não desejam retornar, porque ela significa submissão. E, no entanto, é preciso repor parte, pelo menos, desses elementos afetivos porque são eles que dão a base da construção da identidade e que dão a noção da auto-estima e dos nexos sociais e simbólicos através dos quais as pessoas reconhecem a sua humanidade e constróem os seus sonhos.

Logo, tendo saído de um lugar onde os elementos fixadores das memórias e das experiências são elementos vividos, portanto tácitos, sobre os quais não se tem que pensar, se vai para um lugar onde a memória só pode aparecer se ela for reproduzida, se ela for recriada, se ela for reposta.

Essa reprodução obviamente não pode ser reprodução daquela vida toda que se tinha na origem, porque a situação é completamente outra e uma situação, como se viu, bastante precária, bastante frágil, bastante transitória. Logo, a reprodução se faz numa escala seletiva e redutora do contexto de origem.

Alguns registros simbólicos de espaço, particularmente ligados à religião e à ligação dos paroquianos com as comunidades, constituem uma espécie de enquistamento defensivo que é o ponto a partir do qual adquirem a possibilidade de construir uma experiência de estabilidade, de dentro da qual vão se abrir paulatinamente para um processo controlado de incorporação do estranho, de incorporação do novo, de incorporação do que é propriamente urbano.

Mas é uma incorporação que começa desde o primeiro contato do migrante com a cidade e que vai num crescendo contínuo e irreversível. Ela tem várias etapas, a primeira das quais talvez seja a culinária, a adaptação com as comidas locais. E depois vai indo pelas festas, que em sendo festas típicas da área de origem acabam incorporando gente de diferentes origens e gente de diferentes locais e, portanto, cria uma possibilidade da transição do contato e da comunicação social e que progride em direção às celebrações propriamente urbanas, como são o carnaval, os esportes e o confronto social através da mobilização política.

A rigor, até os anos 50 no Brás a língua mais falada era o italiano nos seus vários dialetos. As festas típicas, como a paróquia de Nossa Senhora de Casaluce e a festa de São Vito, especialmente admirada por causa do seu vasto repertório de especialidades culinárias do sul da Itália: fricacelli, gemarelli e que tanti, hoje convivem em paralelo com as celebrações de outras festas representativas de comunidades cuja herança mais forte é a das raízes africanas, ou indígenas, através dos cultos de umbanda e de candomblé. O Brás é provalvelmente o maior mercado distribuidor de artigos rituais para umbanda e candomblé de todo o território brasileiro.

Nesse sentido é importante lembrar o quanto a celebração de práticas religiosas é um elemento decisivo da integração dessas populações migrantes dentro do novo contexto urbano. E como nesse sentido o Brás é bastante revelador, porque lá está a sede da maior igreja de culto pentecostal que é a Igreja Universal do Reino de Deus, com um templo de proporções ciclópicas, e também é a sede dos movimentos carismáticos da própria igreja católica, como é o caso da Igreja das Santas Missões, que fica no contexto do próprio Largo da Concórdia, no centro do Brás. Portanto, essa circulação das práticas religiosas como elementos substitutivos dos vínculos sociais de origem que foram perdidos é bastante difundida e bastante reveladora do tipo específico de população que se concentra na região.

Outro elemento muito característico da modernidade itinerante do Brás eram as saunas - as mais antigas saunas da cidade, que eram tradicionais pontos de encontro de homossexuais. É curioso que sejam antigas, porque revela o quanto essas populações vindas de áreas extremamente conservadoras, no contato com a cidade acabam mudando completamente os seus valores e tendo que conviver com a crueza da prostituição, particularmente da prostituição infantil, da permissividade, da precocidade e agressividade relacionada às práticas sexuais e do próprio homossexualismo. Que eu lembre, só sobrou uma dessas saunas lá, que fica justamente do lado oposto do restaurante do Balilla, o restaurante que era a sede dos fascistas brasileiros, curiosamente, no âmbito da Praça do Gasômetro. Ponham todas essas coisas juntas - homossexualismo, Gasômetro e fascistas - e vocês vêem como é particularmente difícil de compreender o Brás.

Uma das referências recentes que eu ouvi ao Brás - que são raríssimas na imprensa brasileira - foi numa coluna de gastronomia, que começava dizendo: "É preciso que se saia de São Paulo prá se ir até o Brás, e lá então saborear a autêntica tal, tal, tal, tal, tal, tal". Eu achei extraordinário a idéia de que o Brás continua, ainda, sendo um lugar fora de São Paulo. A população tem que sair de São Paulo para ir ao Brás. Mas se olhamos o mapa, o Brás é o centro de São Paulo. Essas populações é que moram a dezenas de quilômetros do centro de São Paulo. Mas são eles que constróem a opinião, são eles que na verdade são o público dos jornais, são eles que lêem coluna de gastronomia. Isso revela o quanto a segregação dessa área e dessa população continua forte nos nossos dias, da mesma forma que foi desde o início industrial, no começo do século.

O bairro, nesse sentido, constitui uma espécie de área de vazio no adensamento urbano. Há um crescimento vertical espantoso na área central conjugada ao Brás, mas do lado certo do rio, do lado das colinas, e, em direção ao Brás, o que a gente vê é uma rarefação, e uma rarefação que diminui, porque quando há uma intervenção da autoridade pública na área é para derrubar casario para abrir lugar para novas vias de circulação expressa, ou via de circulação rápida.

Do ponto de vista da autoridade pública, o bairro não é uma paisagem, ele é uma passagem. Ele possui fluxos e não seres humanos. Nesse sentido, se pode dizer propriamente que o Brás é relegado, no sentido estrito dessa palavra. É um legado que foi deixado à revelia por uma administração, e por outra, e por outra, e por outra, e a somatória desses abandonos criou uma situação, hoje, praticamente irreversível de degradação.

Os locais de intervenção do Brasmitte são paisagens típicas da região: prédios inteiros completamente abandonados, degradados, em estado de ruína, um cenário que parece cenário de guerra, que lembra a Bósnia, ou que lembra o Líbano, ou coisa assim.

Isso não é casual, porque o bairro sempre foi um foco de tensão social, sempre foi um foco de confrontação política, uma fronteira de atrito com a autoridade estabelecida na cidade.

Entretanto, o que se sabe do próprio bairro, e da população do próprio bairro, é muitíssimo pouco. Se alguém tentar ir a alguma biblioteca especializada em São Paulo em urbanismo, em planejamento urbano, em história, em história urbana, e tentar procurar referências sobre o Brás não vai encontrar praticamente nada. E é nesse sentido, no do resgate dessa experiência, dessa história, dessa população que eu fiquei particularmente contente de ter sido montado esse projeto Brasmitte, que vai provocar uma visibilidade de uma área relegada da cidade, que a população das áreas centrais reluta em admitir como sendo parte do seu próprio corpo social.